Dom Pompório, monge, é denunciado ao abade pela sua exagerada gula; e criticando o abade com uma fábula, livra-se da censura.
Gianfrancesco Straparola
 

Em tempos que lá se vão, havia num mosteiro um monge de meia idade, mas notável e muito comilão. Vangloriava-se de comer numa única refeição um quarto de vitelo e um par de capões. Tinha, este monge, que se chamada Dom Pompório, um prato ao qual pusera o nome de oratório de devoção, e onde cabiam sete grandes escudelas de sopa. E além do conduto, ele, diariamente, tanto no almoço como no jantar, enchia o pratinho de caldo ou de qualquer tipo de sopa, não deixando uma única gota. E todos os restos que os outros monges deixavam, fossem poucos ou muitos, eram apresentados ao oratório e ele os punha na devoção. E, por mais sujos e imundos que fossem, pois que tudo servia aos fins do seu oratório, devorava-os a todos que nem cão esfomeado. Vendo os outros monges a sua desenfreada gula e voracidade, e admirados de sua indolência, com palavras, ora boas, ora más, o repreendiam. Porém, quanto mais o corrigiam, tanto mais lhe crescia o desejo de juntar mais caldo ao seu oratório, pouco se lhe dando de qualquer repreensão. Tinha, porém, o glutão, uma virtude: não se zangava nunca; e cada um podia dizer contra ele o que quisesse que ele não no levava a mal.
Deu-se que um dia o denunciaram a um reverendo abade; o qual, ouvida a queixa, o mandou vir, e lhe disse:
- Dom Pompório, fizeram-me uma grande representação contra ações vossas, a qual, além de constituir grande vergonha, suscita escândalo em todo o mosteiro.
Respondeu Dom Pompório:
- E que oposição me fazem esses acusadores? Sou o monge mais mansueto e mais pacífico de vosso mosteiro; não molesto nem estorvo nunca a ninguém, antes vivo com tranqüilidade e quietude, e se sou por outro injuriado, sofro com paciência e nem por isso me escandalizo.
Disse o abade:
- Então, parece-vos louvável este ato? Tendes um prato não de religioso, mas de fétido porco, no qual além de vosso trivial, pondes todos os restos dos outros, e sem respeito nem vergonha, não como criatura humana nem religioso, mas como besta esfaimada, os devorais. Não percebeis, homem grosseiro e inútil, que todos vos têm como seu bufão?
Respondeu Dom Pompório:
- E como deveria envergonhar-me, padre? Onde se encontra a gora a vergonha do mundo? E quem a teme? Mas, se me dais licença para falar com segurança, responderei; se não, obedecerei a vossas ordens, e observarei silêncio.
Disse o abade:
- Dizei o que vos aprouver, que estamos contentes em que faleis.
Tranqüilizado, Dom Pompório disse:
- Pai abade, estamos numa situação daqueles que carregam odres às costas; cada um vê o do seu companheiro, mas não vê o seu. Se eu comesse iguarias lautas, como o fazem os grandes senhores, decerto comera muito menos do que como. Mas, comendo iguarias grosseiras, de fácil digestão, não me parece vergonhoso o muito comer.
O abade, que vivia suntuosamente, com o prior e outros amigos, de bons capões, faisães, perdizes e demais tipos de aves, compreendeu o que queria dizer o monge; e receando ser apontado por ele às claras, absolveu-o, permitindo-lhe comesse e bebesse a seu talente; pior para quantos não sabiam bem comer e beber.
Indo-se o abade, Dom Pompório, absolvido, dia a dia dobrou a comida, acrescentando ao santo oratório do bom prato a devoção; e porque era seriamente repreendido pelos monges por semelhante bestialidade, subiu ao púlpito do refeitório e com belos modos contou a seguinte fábula:
- Encontraram-se, já faz muito tempo, a água,o vento e a vergonha numa taverna, e comeram juntos; e, praticando de coisas várias, disse a vergonha ao vento e à água: - “Quando, irmão e irmã, voltaremos a estar juntos tão pacificamente como agora?” A água respondeu: “Certamente a vergonha diz a verdade; pois quem sabe quando virá a ocasião de nos reencontrarmos juntos? Mas, se eu te quisesse encontrar, ó irmão, onde fica a tua morada?” Disse o vento: - “Minhas irmãs, cada vez que me quiserdes encontrar para gozarmos o prazer de estar juntos, olhai por qualquer porta aberta, ou rua estreita qualquer, que logo me encontrareis, pois é ali a minha residência. E tu, água, onde moras?” – “Eu estou, disse a água, nos mais baixos pauis, entre aqueles caniços; e por mais seca que seja a terra, sempre lá me encontrareis. E tu, vergonha, qual é a tua estância?” – “Eu, em verdade, respondeu a vergonha – não sei; pois que sou pobrezinha e por todos enxotada. Se olhardes entre os grandes, não me encontrarão, porque não querem ver-me e zombam de mim. Se olhares entre a plebe, são tão desavergonhados que não se importam comigo. Se olhardes entre as mulheres, tanto casadas como viúvas e donzelas, tampouco me encontrarão, dado que fogem de mim como de coisa monstruosa. Se olhardes entre os religiosos, longe deles estarei, pois que com bastões e galhas me espantam; de sorte que até agora eu não vejo habitação onde pousar; e, se não puder acompanhar-vos, vejo-me privada de toda a esperança.” Ouvindo isso, o vendo e a água moveram-se a compaixão e acolheram-na em sua companhia. Não ficaram juntos por muito tempo, porque se levantou grandíssima tempestade, e a pobrezinha, trabalhada do vento e da água, não tendo onde pousar, afundou no mar.” Pelo que eu a tenho procurado em muitos lugares, e ainda a procuro; mas não consegui encontrá-la, nem ela, nem a ninguém que soubesse dizer onde ela estava. E, não a encontrando, não me importo dela nem muito nem pouco; e por isso obrarei à minha maneira, e vós à vossa, pois que hoje no mundo não se encontra a vergonha.
 

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