Como está provado que sou redondamente inapto para escrever Revistas, dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira honesta do defunto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em quando conte uma história amorosa, uma daquelas historias femininas e macias, que nos seroes de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria.
Conhecem o Diabo?
Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de
cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!
O Diabo é a figura mais dramática da História
da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou
os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o
corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é
o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade,
a força, a lei. É então uma espécie de Pã
sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o
sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos
que entrem na humanidade.
É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja.
No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.
É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso
e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta
Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo
e Bruto que apunhalou César.
O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia
do Céu!
Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva
a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre
as nuvens.
Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura
Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador,
libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles
nas florestas úmidas da Gália e embarca expedições
olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo
diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.
Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria,
oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do
abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à
noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento
dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.
Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino,
lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas
da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre
a sela do seu cavalo.
Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa
negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates. Nos
seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha,
deu-se ao pecado da gula.
E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e
sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra
ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.
O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos,
escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus
aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então
Ceranger escreve-lhe o epitáfio.
O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas.
Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite,
S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e
Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu
sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a corografia de
seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia.
Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.
O Diabo amou muito.
Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras.
Foi querido, na Antigüidade, da mãe de César e na Meia
Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de
um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou
duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres
dos mercadores de Veneza.
Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha.
Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César
de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as
mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia
grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings
o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava
em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe,
o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo
cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros
falsos.
Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do
Diabo, nas terras do Norte.
Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal
que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos,
nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história
florida!
Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto.
AA casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz
do senhor arcebispo de Ulm.
Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras,
de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de
marfim. As plantas limpavam piedosamente com as suas mãos de folhas,
o sangue das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés
doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg,
os vinhos da Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo,
sonolento e mau.
E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre
o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre
pulava um desejo.
E todo o dia fiava.
Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso
e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro.
Ela, sentada junto ao crucifixo, cobria os pés de Jesus com
os seus grandes cabelos louros.
As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra
a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo estava ali
consolando, em cima, sob a forma de planta, amando, em baixo, sob a forma
de mulher.
Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar
procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela,
séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado.
Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros
de luz, contar o que tinham visto: era um encanto!
- Se tu soubesses! dizia um olhar. A alma dela é imaculada.
- Se tu visses! dizia o outro. O coração dele é
sereno, forte e vermelho.
- É consolador, aquele peito onde há estrelas!
- É purificador, aquele seio onde há bênçãos!
E olhavam ambos, silenciosos, extáticos, perfeitos. E a cidade
vivia, as arvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa
de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas,
os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas,
as amendoeiras tinham flor e o Reno cantigas de ceifeiras.
E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava
as almas.
Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos,
o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou
dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua
estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.
Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra
de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta
cantar:
E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore.
Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país
do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa
ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto.
Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas
que fizeram da Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente
como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos
dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de
ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade
imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora
esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.
O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda
e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:
- A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes
beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol,
em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?
E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente,
com grandes risadas frias e metálicas:
Pelas horas da madrugada, na estrada, o homem dos cabelos negros
dizia ao pajem:
- Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram
nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto
nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela
rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu.
Já não estou para aventuras de amor. A bela Impéria
diz que me vendi a Deus.
- A bela Impéria! disse o pajem. As mulheres! Vaidades,
vaidades.! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens
são místicos, frades, santos, namorados, trovadores. As mulheres
são feias, avaras, magras, burguesas, finadas de cilícios,
com uma pouca de alma incomoda, e uma carne tão diáfana que
se vê através do lodo primitivo.
- Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem
de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear
o sangue pelo mundo. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no
fim da vinha tinha de me entreter perdoando e consolando para noa morrer
de tédio. Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre,
vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E
todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele,
para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos tempos antigos,
o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro rasgar
a carne a um Deus! É esta minha última aventura. Vou para
o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente
a morrer.
- Também os diabos se vão. Adeus, Satã!
- Adeus, Ganímedes!
E o homem e o pajem separaram-se na noite.
A poucos passos, o homem encontrou um cruzeiro de pedra.
- Estás também deserto disse, olhando para a cruz.
Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu. Sofreste
calado.
E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada,
afinou a guitarra e cantou no silêncio:
E com uma risada melancólica: