A Dama
do Pé de Cabra
Trova primeira
1
ós os
que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias
de Satanás assenta aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim,
e contarei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.
E não me digam no fim: - não pode ser. Pois eu
sei cá inventar coisas destas? Se a conto é porque a li num
livro muito velho, quase tão velho como o nosso Portugal.
E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é
o mesmo, a algum jogral em seus cantares.
É uma tradição veneranda; e quem descrê
das tradições, irá para onde o pague.
Juro-vos que, se me negais esta certíssima história,
sois dez vezes mais descridos do que S. Tomé antes de ser
grande santo. E não sei se eu estarei de ânimo de perdoar-vos,
como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo porque vou principiar.
2
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra
no inverno, sóis de estivas no verão, noites e madrugadas,
disso se ria ele.
Pela manha cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada,
em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido
pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era
um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela
estava assentada uma formosa dana, era a dama quem cantava.
O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes não
corre, voa para o penhasco.
“Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sois, que logo
me cativastes?”
“Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de
reis, como tu, senhor de Biscaia. ”
“Se já sabes quem eu seja, ofereço a minha mão,
e com ela as minhas terras e vassalos. ”
“Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas são
para seguires tuas montarias; para o desporto e folgança de bom
cavaleiro que és. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia,
que poucos são eles para te baterem a caça. ”
“Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vós
e de mim que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espanha
o rico-homem mais abastado?”
“Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitara em arras coisa é
de pouca valia; mas apesar disso, não creio que m´o concedas,
porque é um legado de tua mãe. ”
“E se eu te amasse mais que a minha mãe, porque não te
cederia qualquer dos seus muitos legados?”
“Então se queres ver-me sempre ao pé de ti, não
jures que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra.
”
“A lá fé de cavaleiro, não darei uma; darei milhentas
palavras. ”
“Pois sabe que para eu ser tua é preciso esquecer-te de uma
coisa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para
morrer, ainda te recordava.
“De que, de que, donzela? – acudiu o cavaleiro com os olhos flamejantes.
– De nunca dar tréguas a mourisma, nem perdoar aos cães de
Mafamede? Sou bom cristão.”
“Não é isso, D. Cavaleiro – interrompeu a donzela
a rir. – O de que eu quero que te esqueças é do sinal
da cruz: o que quero que me prometas é que nunca mais hás
de persignar-te. ”
“Isso agora é outra coisa” – respondeu D. Diogo, que nos
folgares e devassidões perdera o caminho do céu. E
se pôs a cismar. E cismando, dizia consigo: - “De que servem
benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago.
Ela por ela. Um presente ao apóstolo e duzentas cabeças
de cães de Mafamede valem bem um grosso pecado. ”
E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou:
“Seja assim: está dito. Vá, com seiscentos diabos.
”
E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera
montado.
Só quando à noite, em seu castelo, pôde considerar
miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés
forcados como os de cabra.
3
Dirá agora alguém: - “Era por certo o demônio que entrou
em casa de D. Diogo Lopes. O que lá não iria.
” Pois sabei que não ia nada.
Por anos a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e união.
Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e Dona Sol, enlevo ambos
de seu pai.
Um dia de tarde, D. Diogo voltou de grande montear; trazia um
javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo
ao aposento onde comia, para se regalar de ver a excelente presa que havia
feito.
Seu filho assentou-se ao pé dele: ao pé da mãe,
Dona Sol; e começaram alegremente seu jantar.
“Boa montaria, D. Diogo – dizia sua mulher. – Foi uma boa
e limpa caçada. ”
“Pelas tripas de Judas! – respondeu o barão.
“Que há bem cinco anos não colho urso ou porco montês
que este valha!”
Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata, virou-o de gole à
saúde de todos os ricos-homens fagueiros e monteadores.
E a comer e a beber durou até a noite o jantar.
4
Ora deveis saber que o senhor de biscaia tinha um alão a quem muito
queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono e até com
os servos da casa.
A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche,
esperta e ligeira que mais não havia dizer, e dela não menos
prezada.
O alão estava gravemente assentado no chão defronte de
D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semi-cerrados,
como quem dormitava.
A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando
como um diabrete: o pelo liso e macio reluzia como um reflexo avermelhado.
O barão, depois da saúde urbi et orbi feita aos monteiros,
esgotava um kirie comprido de saúdes particulares, e a cada nome,
uma taça.
Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha a
fazer neste mundo, senão dormir, beber, comer e caçar.
E o alão cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga
saltava.
O senhor de Biscaia pegou então um pedaço de osso com
sua carne e medula e atirando-a ao alão gritou-lhe: “Silvano, toma
lá tu, que és fragueiro: leve o diabo a podenga, que não
sabe senão correr e retouçar. ”
O cão abriu os olhos, rosnou, pôs a pata sobre o osso
e, abrindo a boca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir
deslavado. Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio-morto:
a podenga, de um pulo, lhe saltara à garganta, e o alão agonizava.
“Pelas barbas de D. From, meu bisavô! – exclamou D.
Diogo, pondo-se em pé, trêmulo de cólera e vinho.
– A cadela maldita matou-me o melhor alão da matilha; mas juro que
hei de escorraça-la. ”
E virando com o pé o cão moribundo, mirava as largas
feridas do nobre animal, que expirava.
“A lá fé que nunca tal vi. Virgem bendita! Aqui
anda coisa de Belzebu!” E dizendo e fazendo, benzia-se e persignava-se.
“Ui!” gritou sua mulher como se a houvera queimado. O barão
olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca
torcida e os cabelos eriçados.
E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre Dona Sol debaixo
do braço esquerdo: o direito, estendia-o por cima da mesa para seu
filho, D. Inigo.
E aquele braço crescia, alongando-se para o menino que, de medo,
não ousava bulir nem falar.
E a mão da dama era preta e luzidia, como o pêlo da podenga,
e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras.
“Jesus, santo nome de Deus!” bradou D. Diogo, a quem o terror
dissipara as fumaças do vinho. E, travando de seu filho com
a esquerda, fez no ar com a direita uma e outra vez, o sinal da cruz.
E sua mulher deu um grande gemido e largou o braço de Inigo,
que já tinha seguro, e continuando a subir ao alto, saiu por um
grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.
Desde esse dia não houve saber mais nem da mãe nem da
filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguém
no castelo lhe tornou a pôr a vista em cima.
D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste, porque já não
se atrevia a montear. Lembrou-se, porém, um dia de espairecer
sua tristura e, em vez de ir à caça dos cerdos, ursos e zebras,
sair à caça dos mouros.
Mandou, pois, alevantar o pendão, desenferrujar e polir a caldeira
e provar seus arnazes. Entregou a Inigo Guerra, que já era
mancebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com a lustrosa
mesnada de homens d´armas para a hoste d´el Rei Ramiro, que
ia em fossado contra a mourisma de Espanha.
Por muito tempo, não houve dele em Biscaia, nem novas, nem mensageiros.
Trova Segunda
1
ra um dia ao anoitecer.
D. Inigo estava à mesa, mas não podia cear, que grandes
desmaios lhe vinham ao coração. Um pagem muito mimoso
e privado que, em pé diante dele, esperava seu mandar, disse então
para D. Inigo:
“ Senhor, porque não comeis?”
“Que hei de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo está
cativo de mouros, segundo rezam as caras que ora dele são vindas?”
“Mas seu resgate não é a vossa mofina: dez mil peões
e mil cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia: vamos correr terras de mouros:
serão os cativos resgate de vosso pai. ”
“O perro d´el-Rei de Leão fez sua paz com os cães
de Toledo e são eles que tem preado meu pai. Os condes do
rei tredo e vil não deixariam passar a boa hoste de Biscaia. ”
“Quereis, meu senhor, um conselho e não vos custará nem
mealha?”
“Dize lá, Brearte. ”
“Por que não ides à serra procurar vossa mãe?
Segundo ouço contar, ela é grande fada. ”
“Que dizes tu, Bearte? Sabes quem é minha mãe e que casta
é de fada?”
“Grandes histórias tenho ouvido do que se passou certa noite
neste castelo: éreis vós pequenino e eu ainda não
era nada. Os porquês destas histórias, isso Deus é
que o sabe. ”
" Pois direi eu agora. Chega-te para cá, Brearte. ”
O pagem olhou de roda de si, quase sem o querer e chegou-se para seu
amo: era a obediência e, ainda mais, certo arrepio de medo que o
faziam chegar.
”Vês tu Brearte, aquela fresta entaipada? Foi por ali que minha
mãe fugiu. Como e porque, aposto que já te hão
contado?”
“Senhor, sim!! Levou vossa irmã consigo. .
"
“Responder só ao que pergunto! Sei isso. Agora cala-te.
"
O pagem pôs os olhos no chão, de vergonha: que era humildoso
e de boa raça.
2
E o cavaleiro começou o seu narrar:
"Desde aquele dia maldito, meu pai pôs-se a cismas: e cismava
e amesquinhava-se, perguntando a todos os monteiros velhos se, porventura,
tinham lembrança de haverem no seu tempo encontrado nas brenhas
alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um nunca acabar do historias
do bruxas e almas penadas.
Havia muitos anos que meu senhor pai se não confessava: alguns
havia, também, que estava viúvo sem ter enviuvado.
Certo domingo pela manhã nasceu alegre o dia. Como se fora
de páscoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo e triste,
como costumava. Os sinos do mosteiro, lá em baixo no vale.
tangiam tão lindamente que era um céu aberto Ele pôs-se
a ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez chorar. ” Irei ter com o abade—
disse ele lá consigo - quero confessar-me. Quem sabe se esta
tristura ainda é tentação de Satanás? O abade
era um velhinho santo, santo. que não o havia mais.
Foi a ele que se confessou meu pai. Depois de dizer mea culpa,
contou-lhe ponto por ponto a história do seu noivado.
“Filho - bradou o frade - fizeste maridança com uma alma
penada!”
"Alma penada, não sei " tornou D. Diogo - mas era
cousa do diabo.
“Era alma em pena: digo eu, filho - replicou o abade. -
Sei a história dessa mulher das serras. Está escrita
ha mais de cem anos na última folha de um santoral godo do nosso
mosteiro. Desmaios que te vem ao coração pouco me espantam.
Mais que ânsias e desmaios costumam roer lá por dentro os
pobres excomungados.
”Então, estou excomungado?”
“Dos pés até a cabeça; por dentro e por fora,
que não há que dizer mais nada."
E meu pai, a primeira vez na sua vida, chorava pelas barbas abaixo.
O bondoso abade amimou-o, como a uma criança: consolou-o, como
a um mal-aventurado. Depois pôs-se a contar a história
da dama das penhas, que é minha mãe. Deus me
salve!
E deu-lhe por penitência ir guerrear os perros sarracenos por
tantos anos quantos vivera em pecado, matando tantos deles quantos dias
nesses anos tinham corrido. Na conta não entravam as sextas-feiras,
dia da paixão de Cristo, em que seria irreverência tosquiar
a vil relé de agarenos, coisa neste mundo mui indecente e escusada.
Ora a história da formosa dama das serras, como estava na folha
branca do santoral, rezava assim, segundo lembranças do abade.
3
No tempo dos reis godos - bom tempo era esse - havia em Biscaia
um conde, senhor de um castelo posto em montanha fragosa, cercado pelas
encostas e quebradas de larguíssimo soveral. No soveral havia
todo o gênero de caça, e Argimiro o Negro (assim se chamava
o rico-homem) gostava. como todos os nobres barões de Espanha,
principalmente de três coisas boas segundo a carnalidade: da guerra,
do vinho e das damas; mas ainda mais do que tudo isso gostava de montear.
Dama, possuía-a formosa, que era a linda condessa; vinho, não
havia melhor adega que a sua; caça, era coisa que na selva não
faltava.
Seu pai, que fôra caçador e fragueiro, quando estava para
morrer, chamou-o e disse-lhe: -"Hás de me jurar uma coisa que não
te custara nada."
Argimiro jurou que faria o que seu pai e senhor lhe ordenasse.
"É que nunca mates fera em cama e com cria, seja urso, javali
ou veado. Se assim o fizeres, Argimiro, nunca nas tuas selvas e faltará
em que exercites o mais nobre mister de um fidalgo. Além disso,
se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me, que
é um horrendo caso. "
O velho não pôde acabar; porque a morte lhe cravou neste
momento as garras. Murmurou algumas palavras emperradas, revirou
os olhos e feneceu. Deus seja com a sua alma!
Passaram depois anos: certo dia chegou ao castelo do moço conde
um mensageiro d'el-rei Wamba. Chamava-o el-rei a Toledo para o acompanhar
com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-homens das
cercanias eram, como ele, chamados.
Antes, porém, de partirem, ajuntaram-se todos no castelo de
Argimiro para fazerem uma grande montaria, com mais de cem alãos,
sabujos e lebreus, cinqüenta monteiros e moços de besta sem
conto. Era uma vistosa caçada.
Saíram do quarto d´alva: correram vales e montes, bateram
bosques e matos. Era, contudo, meio dia e ainda não haviam alevantado
porco, urso, zebra ou veado. Blasfemavam de sanha os cavaleiros, praguejavam
e depenavam as barbas.
Argimiro que, por longa experiência, conhecia os sítios
mais profundos da espessura, sentiu lá por dentro uma tentação
do diabo.
“Os meus hóspedes, pensava ele, não partirão sem
beberem alguns canjirões de vinho sobre uma ou duas peças
de caça. Juro-o por alma de meu pai.
E, seguido de alguns monteiros, com suas trelas de cães, afastou-se
da companhia e deu a andar, a andar, até que se lançou por
um vale abaixo.
O vale era escuro e triste: corria por meio uma ribeira fria e mal-assombrada.
As bordas da ribeira eram penhascosas e faziam muitas quebradas.
Argimiro chegou à primeira volta do rio: parou, pôs-se
a olhar de roda e achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta
fragosa, que descia até a estreita senda da margem por onde o cavaleiro
caminhava. Argimiro entrou na boca da cova e, a um aceno, entraram após
ele monteiros, moços de besta, alãos, sabujos e lebreus,
fazendo grande matinada.
Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido e, deixando suas crias,
estendeu-se no chão e abaixou a cabeça, como quem suplicava.
“A ela!” – gritou Argimiro; mas gritou voltando a cara.
A matilha saltou no pobre animal, que soltou outro gemido e caiu todo
ensangüentado.
Uma voz soou então nos ouvidos do conde e dizia:
“Órfãos ficaram os cachorrinhos do onagro mas pelo onagro
tu ficarás desonrado.” Quem ousa aqui falar agouros? - gritou o
rico-homem, olhando iroso para os monteiros Todos guardavam silêncio;
mas todos estavam pálidos.
Argimiro pensou um momento. depois, saindo da cova, murmurou:
- Vá, com mil Satanases .
E, com alegres toques de buzina e latidos da matilha, fez conduzir
ao castelo a preá que tinha preado.
E, tomando o seu gerifalte prima em punho, ordenou aos monteiros
fossem dizer aos nobres caçadores que dentro de duas horas voltassem,
porque achariam em seu paço comida bem aparelhada.
Depois, seguido dos falcoeiros, começou a encaminhar-se para
o solar, lançando nebris e falcões e ajuntando caça
de volateria, que a havia por aqueles montes mui basta.
4
Dobrava a campa da torre de menagem no castelo do conde Argimiro: dobrava
pela linda condessa, que seu nobre marido havia matado.
Andas cobertas de dó a levam a enterrar ao mosteiro vizinho:
os frades vão atrás das andas cantando as orações
dos finados; após os frades vai o rico-homem vestido de grossa estamenha
cingido com uma corda, e rasgando pelas sarças e pedras os pés
que levava descalços.
Por que matou ele sua mulher, e por que ia ele descalço? Eis
o que, a esse respeito, refere a lenda escrita na folha branca do santoral.
5
Dois anos duraram guerras d el-rei Wamba: foram guerras mui de contar.
E por lá andou o rico-homem com seus bucelarios, que assim se diziam
então acostados e homens d´armas. Fez estrondosas façanhas
e cavalarias: mas voltou coberto de cicatrizes, deixando por campos de
batalha gasta e consumida a sua valente mesnada.
E, atravessando de Toledo para Biscaia, seguia-o apenas um velho escudeiro.
Velho e cheio de cãs e rugas também ele era, não de
anos, mas de penas e de trabalho.
Caminhava triste e feroz no aspecto; porque de seu castelo lhe eram
vindas novas d'entristecer e raivar. E, cavalgando noite e dia por montes
e por charnecas por bosques e por jardins, imaginava no modo como descobriria
se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau pecado.
6
No solar do conde Argimiro, um ano depois da a sua partida, ainda tudo
dava mostras da mágoa e saudade da condessa: as salas estavam forradas
de negro: de negro eram os trajos dela: nos pátios interiores dos
paços crescera a erva de modo que se podia ceifar: as reixas e as
gelosias das janelas não se haviam tornado a abrir: descantes dos
servos e servas, sons de psalterios e harpas tinham deixado de soar.
Mas ao cabo do segundo ano tudo aparecia mudado: as colgaduras eram
de prata e matiz: brancos e vermelhos os trajos da bela condessa: pelas
janelas do paço restrugia o ruído da música e dos
saraus; o solar de Argimiro estava por dentro e por fora alindado.
Um antigo vilico do nobre conde fôra quem destas mudanças
o avisara. Doíam-lhe tantos folgares e contentamentos.
Doía-lhe a honra de seu senhor pelo que ele via e pelo que se murmurava.
Eis-aqui como se passara o caso:
7
Longe do condado do ilustre barão Argimiro o Negro, para as bandas
da Galiza, vivia um nobre gardingo - como quem dissesse infanção
- gentil-homem e mancebo, chamado Astrigildo Alvo.
Contava vinte o cinco anos; os sonhos das suas noites eram do formosas
damas; eram de amores e deleites: mas, ao romper da manhã.
todos eles se desfaziam, que, ao sair ao campo, não via senão
pastoras tostadas do sol e das neves e as servas grosseiras do seu solar.
Destas estava ele farto. Mais de cinco tinha enganado com palavras:
mais de dez comprado com ouro; mais de outras dez como nobre e senhor que
era, brutalmente violado.
Com vinte e cinco anos, já no livro da justiça divina
se lhe haviam escrito mais de vinte e cinco maldades.
Uma noite sonhou Astrigildo que corria serras e vales com a rapidez
do vento, montado em onagro silvestre, e que, depois de correr muito chegava
alta noite a um solar, onde pedia gasalho. E que formosa dama o recebia,
e que em poucos instantes um do outro se enamorava. Acordou sobressaltado
e, durante o dia inteiro, não pensou em outra coisa senão
na formosa dama que vira naquele sonhar da madrugada. Três noites
se repetia o sonho: Três dias o mancebo cismava encostado à
varanda de um eirado. Na tarde de terceiro dia, olhava triste para
as montanhas do norte, que via lá no horizonte. como nuvens
pardacentas. O sol começava a descer no poente, e ainda ele
estava embebido em melancólico cismar.
Por acaso, volveu então os olhos para o terreiro que lhe ficava
por baixo: um onagro da floresta estava ali deitado como se fosse manso
jumento; era inteiramente semelhante àquele com que havia
sonhado.
Sonhos da três noites a fio não mentem: Astrogildo desceu
a pressa ao terreiro. Sem bulir pé nem mão o onagro
deixou-se enfrear e selar; e, a Deus e à ventura, o
mancebo cavalgou nele e deitou pela encosta abaixo. Cumpria-se tudo à
risca: o onagro não corria, voava.
Mas o céu começou de toldar-se com o anoitecer: a escuridão
cresceu e desfechou em vento, trovões, chuva e raios. O mancebo
perdia a tramontana e o onagro dobrava a carreira e bufava violentamente.
Parou, enfim a horas mortas. Sem saber como, Astrigildo achou-se
junto das barreiras de um solar acastelado.
Tocou a sua buzina, que deu um som prolongado e trêmulo porque
ele tremia da susto e com frio. Apenas cessou de tocar, a ponte levadiça
desceu muitos escudeiros saíram a recebê-lo entre tochas
e as salas dos paços iluminaram-se.
Era que também a condessa tinha por três noites sonhado:
8
A clepsidra aponta a hora de sexta noturna e ainda dura o sarau no solar
do conde de Biscaia; porque a nobre condessa e o gentil Astrigildo assistem
às danças e aos jogos dos libertos e servos que, para eles
espairecerem, trabalham lá na sala d'armas. Mas, num aposento
baixo do solar, um homem está em pé com um punhal na mão,
olhar furibundo e o cabelo eriçado, parecendo escutar longínqua
toada.
Outro homem está diante dele, dizendo-lhe:
-"Senhor, ainda não é tempo para punir o grande pecado.
Quando eles se recolherem, aquela luz que vedes acolá há
de apagar-se. Subi então, e achareis desimpedido o caminho
secreto para a câmara, que é a mesma do vosso noivado."
E o que falava saiu, e dali a pouco a luz apagou-se e o homem
dos cabelos hirtos e do olhar esgazeado subiu por uma íngreme e
tenebrosa escada.
9
Quando pela manhã cedo o conde Argimiro, do seu balcão principal,
ordenava que levassem o corpo da condessa a um mosteiro de donas que ele
fundara para ai ter sou momento, ele e os de sua casa, e dizia aos homens
de armas que arrastassem o cadáver de Astrigildo e o despenhassem
de um grande barrocal abaixo, viu um onagro silvestre deitado a um canto
do pátio.
"Um onagro assim manso é coisa que nunca vi - disse ele
ao vilico que estava ali ao pé. - Como veio aqui este
onagro?”
O vilico ia a responder, quando se ouviu uma voz: dir-se-ia que era
o ar que falava. Foi nele que veio Astrigildo. Será ele que
o levará. Por ti ficaram órfãos os filhinhos do onagro,
mas por via do onagro ficaste, oh conde, desonrado. Foste cru com
as pobres feras: Deus acaba de vingá-las.”
“Misericórdia! bradou Argimiro, porque naquele momento
se lembrou da maldita caçada. Neste comenos os homens do conde saíam
com o cadáver sangrento do mancebo: o onagro, apenas o viu, saltou
como um leão no meio da turba, que fez fugir, e travando do morto
com os dentes, arrastou-o para fora do castelo, e, como se tivesse em si
uma legião de demônios, foi precipitar-se com ele do barrocal
abaixo.
Era por isso que o conde ia cingido de corda e descalço após
os frades e a turba. Queria fazer penitência no mosteiro por
haver quebrado o juramento que tinha feito a seu pai.
As almas da condessa e do gardingo caíram de chofre no inferno,
por terem deixado a vida em adultério que é pecado mortal.
Desde esse tempo as duas miseráveis almas têm aparecido a
muita gente nos desvios da Biscaia: ela vestida de branco e vermelho, assentada
nas penhas, cantando lindas toadas: ele retouçando ai perto, na
figura do um onagro.
Tal foi a historia que o velho abade contou a meu pai e que ele me
relatou a mim, antes de ir cumprir sua penitência nessa guerra
de mouros que lhe foi tão fatal. Assim concluiu Inigo Guerra.
Brearte, o pagem, sentia os cabelos arrepiarem-se-lhe. Por
largo tempo ficou imóvel defronte de seu senhor: ambos em silêncio.
O moço rico-homem não podia engolir bocado.
Tirou por fim da escarcela a carta de D. Diogo para a tornar
a ler. As misérias e lástimas que o rico-homem ali
recontava eram tais que D. Inigo sentiu o pranto gotejar-lhe abundante
pelas faces abaixo.
Então ergueu-se da mesa para se ir deitar. Nem o barão
nem o pagem pregaram olho toda a noite; este de medroso, aquele de desconsolado.
E nos ouvidos de Inigo Guerra soavam contínuo as palavras de
Brearte: - “Por que não ides à serra procurar vossa mãe?”
– Só por encantamento seria, de feito, possível tirar das
unhas dos mouros o nobre senhor de Biscaia.
Rompeu, finalmente, a alvorada.
Trova terceira
1
ensageiros
após mensageiros, cartas sobre cartas são vindos de Toledo
a Inigo Guerra. El rei de Leão resgatava todos os dias cavaleiros
seus por cavaleiros mouros; mas não tinha wali ou kayd cativo que
pudesse dar em troca por tão nobre senhor como o de Biscaia.
E muitos dos redimidos eram das bandas das serras, e estes, trazendo
mensagens, contavam ainda mais lástimas do velho D. Diogo, do que,
se é possível, essas de que rezavam as cartas.
“À porta do aguião, em Toledo – diziam eles, tem a mourisma
um grande campo, todo muito bem apalancado. Aqui fazem grandes festas,
guinolas e touros nos dias dos seus perros santos, segundo lá pregam
e determinam.
“Gaiolas de bestas muitas há ali, coisa de ver e pasmar: os
tigres e leões não as rompem; rompê-las mãos
de homens, fôra pequice tão somente imaginá-lo.
“Numa dessas prisões, quase nu, com adovas de pés e mãos,
está o ilustre rico homem, que já foi capitão de grandes
e lustrosas mesnadas.
“Corteses costumam ser mouros com seus fidalgos cativos. Fazem esta
perraria a D. Diogo porque já são passados três anos
e não há ver seu resgate.”
E os peregrinos que vinham do cativeiro e relatavam tais coisas, bem
ceiados e agasalhados no castelo, iam-se no outro dia com Deus, levando
provida a escarcela e em boa e santa paz.
Quem não ficava em paz era D. Inigo: - “Por que não vais
tu à serra?” – dizia-lhe uma voz ao ouvido – “Por que não
ides procurar vossa mãe?” repetia-lhe o pagem Brearte.
Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso.
Pela manhã, a Deus e à sorte, hei-lo que, enfim, se resolve
a tentar a aventura, bem que de seu mau grado.
Benzeu-se vinte vezes, para não ter lã de persignar-se.
Rezou o Pater, a Ave e o Credo; porque não sabia se em breve essas
orações seriam coisa de recordar-se.
E, seguido de um mastim, seu predileto, a pé e com uma ascuma
na mão, foi-se através das brenhas, por uma vereda que dizia
para os píncaros tristes e ermos onde era a tradição
que a linda dama tinha aparecido a seu pai.
2
Trinam os rouxinóis nos balseiros; murmuram ao longe as águas
dos regatos; ramalha a folhagem brandamente com a viração
da manhã: vai uma linda madrugada.
E Inigo Guerra galga, manso e manso, os carris empinados, trepa de
barrocal em barrocal e, apesar de seu muito esforço, sente bater-lhe
o coração com ânsia desacostumada.
Muito havia que andava embrenhado: o sol ia alto e o dia calmoso: ao
canto do rouxinol seguira o rechinar da cigarra.
E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro e, saltando de
aresta em aresta, vinha cair em almacega tosca, onde o sol parecia dançar
no bulir das ondinhas que fazia o despenho da cascata.
D. Inigo assentou-se à sombra da rocha e, tirando a sua monteira,
matou a sede que trazia e pôs-se a lavar o rosto e a cabeça
do suor e pó, que não lhe faltava.
O mastim, depois de beber, deitou-se ao pé dele e, com a língua
pendente, arquejava de cansado.
De repente, o cão pôs-se em pé e arremeteu, com
um grande ladro.
D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira
junto de um frondoso carvalho.
“Tarik! – gritou o mancebo – Tarik! – Mas Tarik ia avante e não
escutava.
“Ai, deixa-o correr, meu filho. Não é para o teu mastim
levar a melhor deste onagro.”
Isto dizia uma voz que, lá em cima no alto da penha, começou
a soar.
Olhou: uma linda mulher estava aí assentada e, com gesto amoroso
e riso d´anjo para ele se inclinava.
“Minha mãe! Minha mãe! – bradou Inigo, levantando-se:
e lá consigo dizia: - Vade retro! Santo Hermenegildo me valha.”
“Filho, na boca palavras doces: no coração palavras danadas.
Mas que importa, se és meu filho? Dize o que queres de mim e será
tudo feito a tua vontade.”
O moço nem acertava falar com medo. Já a este tempo Tarik
gemia uivando debaixo dos pés do onagro.
“Cativo está de mouros há anos meu pai D. Diogo – disse
por fim titubeando. – Quisera me ensinasseis, senhora, o modo como hei
de salvá-lo.”
“Seu mal, tão bem como tu, eu sei. Se pudesse, ter-lhe-ia acorrido,
sem que viesses requerê-lo; mas o velho tirano do céu quer
que ele pene tantos anos quantos viveu com a... com a que sandeus chamam
Dama Pé-de-Cabra.”
“Não blasfemeis contra Deus, minha mãe, que é
enorme culpa” – interrompeu o mancebo, cada vez mais horrorizado.
“Culpa?! Não há para mim inocência nem culpa.”
- replicou a dama, rindo às gargalhadas.
Era um rir de dorminte, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquele
dever ser o riso.
“Inigo! Prosseguiu ela – falta um ano para cumprir-se o cativeiro do
nobre senhor de Biscaia. Um ano passa depressa: mais depressa eu farei
passar. Vês tu aquele valente onagro? Quando uma noite acordando,
o achares ao pé de ti, manso como cordeiro, cavalga nele sem susto,
que te levará a Toledo onde livrarás teu pai. – E bradando
acrescentou: - Estás por isto, Pardalo?”
O onagro fitou as orelhas e, em sinal de aprovação, começou
a azurrar.
Depois a dama pôs-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se
de psalteiro de que tirava muitas estranhas toadas:
Pelo cabo da vassoura,
Pela corda da polé,
Pela víbora que vê,
Pela Sura e pela Toura;
Pela vara do condão,
Pelo pano da peneira,
Pela velha feiticeira,
Do finado pela mão
(...)
Que ele durma um ano inteiro,
Como em sono de uma hora,
Junto à fonte que ali chora,
Sobre a relva deste outeiro.
Enquanto a dama cantava, o mancebo sentia um quebrantamento dos membros
que crescia cada vez mais e que o obrigou a assentar-se.
E logo ouviu-se um ruído abafado como de trovões e de
ventanias engolfando-se em covoadas: depois o céu começou
a toldar-se e cada vez era mais cris, até que, enfim, apenas uma
luz de crepúsculo o alumiava.
E a mansa almacega refervia, e os penedos rachavam, e as árvores
torciam-se, e os ares sibilavam.
E das bolhas da água da fonte, e das fendas dos rochedos, e
d´entre as ramas dos robles, e davastidão do ar via-se descer,
subir, romper, saltar... o que? Coisa muito espantável. Eram mil
e mil braços sem corpos, negros como carvão, tendo nos cotos
uma asa, e na mão uma espécie de facho.
Como a palha que o tufão alevanta na eira aquela multidão
de candeias cruzava-se. revolvia-se unia-se, separava-se, remoinhava.
mas sempre com certa cadência, como que dançando a compasso.
D. Inigo andava a cabeça à roda; as luzes pareciam azuis,
verdes e vermelhas: mas corria-lhe pelos membros uma languidez tão
suave que não teve ânimo para fazer o sinal da cruz e afugentar
aquele bando de satanases.
E sentia-se esvaecer e pouco a pouco, adormecia e dali a pouco, roncava.
Entretanto, no castelo tinham dado pela sua falta. Esperaram-no ate
a noite: esperaram-no uma semana, um mês, um ano, e não o
viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a sorra; mas o sítio
onde o cavaleiro jazia, isso é que não havia lã chegar.
3
Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas: ao menos ele
assim o cria Olhou para o céu viu estrelas: apalpou ao redor, achou
terra, escutou ouviu ramalhar as árvores.
Pouco a pouco e que se foi recordando do que passara com sua
mal-aventurada mãe; porque, a princípio não se lembrava
de nada.
Pareceu-lhe então ouvir respirar ali perto: .. firmou
a vista: era o onagro Pardalo. Já agora meio enfeitiçado
estou eu - pensou ele: - corramos o resto da aventura. a ver se posso
salvar meu pai.
E pondo-se em pé. encaminhou-se para o valente animal, que ia
estava enfreado e selado: cujos eram os arreios, isso sabia-o o diabo.
Hesitou, todavia. um momento: tinha seus escrúpulos - a boas
horas vinham eles - de cavalgar naquele corredor infernal.
Então ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava muito entoado.
Era a voz da terrível Dama-Pé-de-Cabra:
Cavalga, meu cavaleiro alentado corredor;
Vai salvar o bom senhor:
Vai quebrar seu cativeiro.
Pardalo, não c comerás
Nem cevada nem aveia
Não terás jantar nem ceia,
Rijo e leve voltarás.
Nem em açoute, nem espora
Requer ele. oh cavaleiro
Corre corre bem ligeiro,
Noite e dia a toda a hora.
Freio ou sela não lhe tires,
Não lhe fales. não o ferres.
Na carreira não te aterres,
Para traz nunca te vires.
Upa! ' firma! - avante, avante,!
Breve, breve, a bom correr
Um minuto não perder
Bem que o galo ainda não cante.
Vá! - gritou Inigo Guerra, com uma espécie de frenesi
que nele produzira aquele cantar estranho e dum pulo cavalgou no quedo
onagro. Mas apenas se firmou na sela, pst! - hei-lo que parte
4
Posto que em paz com os cristãos. Os mouros de Toledo têm
pelas torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias,, e nos montes que
dizem para a fronteira de Leão seus fachos e almenaras.
Mas se o rei leonês soubesse como descuidada jaz Toledo; como
ao anoitecer, se deixam dormir vigias, só deixam de acender fachos,
quebraria seus juramentos e faria contra aquelas partes um repentino fossado.
Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer Deo, e peccavi;
porque o quebrar o juramento, ainda que seja a cães descridos dizem
ser feio pecado.
Era a hora do lusco-fusco: ao sol posto os de Toledo, mirando para
a banda do norte, viram, lá muito ao longe, vir correndo uma nuvem
negra, ondeando e fazendo voltas no céu como a estrada as fazia
na terra por entre os montes: dir-se-ia que vinha embriagada.
Era primeiro um pontinho: depois crescera e crescera: quando anoiteceu,
estava já perto e cobria um grande espaço.
O almoaden, subindo, à torre da mesquita, chamava os crentes
de Mafamede para a oração da tarde.
Mas com a sua voz esganiçada misturou-se o estrondear dos trovões:
era como um tiple e um baixo.
E passou um tafão de vento, que, embrenhando-se e remoinhando
nas barbas longas e brancas do almoaden, lhe fustigou com elas a cara.
Começou então a cair uma corda de chuva. que nem moços
nem velhos se lembravam de ter visto coisa semelhante em nenhuma parte.
Aqui viríeis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres;
os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos adarves: os facheiros a sumirem-se
debaixo das almenaras, os hadjis a acolherem-se às mesquitas molhados
até os ossos; as velhas, que tinham saído ao vozear do almoaden,
levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma
e por Alá. E a água caindo cada vez mais!
Dois únicos movimentos fazem então os moradores de Toledo:
uns fogem, outros agacham-se. E a água caindo cada vez mais!
O pavor quebra todos os ânimos: os cacizes esconjuram a procela:
os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo. e que lhes deixe os
seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a água caindo cada vez
mais !
A salvação de Toledo foi não se terem fechado
suas portas: se assim não sucedesse, dentro do recinto dos muros
morria toda a mourisma afogada.
5
Na prisão estava D. Diogo encostado as grades de ferro. O pobre
velho entretinha-se a ouvir aquele medonho chover; porque a noite era comprida,
e ele não tinha que fazer mais nada.
Mas, como terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros,
a chuva não podia escoar-se toda. e vinha crescendo de modo que
já ele sentia os pés molhados..
E também começou a ter medo de morrer, apesar de sua
miséria. Bem sabia D. Diogo que a morte e a maior delas todas; que
não era o senhor de Biscaia ateu, filósofo nem parvo.
Mas lá divisa um vulto alvacento que saltou por cirna do palanque,
e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro - plash!
E ouviu uma voz que dizia—.. "Nobre senhor. Diogo, onde a que vós
vos achais!!!
"Que vejo e ouço ? ! - exclamou o velho - Um trajo que não
alveja não é trajo de ismaelita; uma voz que não o
fala algaravia não e de infiel: um salto de tal altura não
e de cavaleiro do mundo. Por vossa fé dizei-me, sois anjo ou sois
Santiago."
“Meu pai, meu pai! - acudiu o cavaleiro - já não
conheceis a fala de Inigo ? Sou eu que venho salvar-vos.”
E D. Inigo descavalgou e, travando das grossas reixas, tentava alui-las:
a água dava-lhe já pelos artelhos, e ele não fazia
nada.
Cheio de aflição, o mancebo quis invocar o nome de Jesus:
mas lembrou-se de como ali viera, e o bento nome expirou-lhe nos lábios.
Todavia,
Pardalo pareceu adivinhar o seu íntimo pensamento: porque soltou
um gemido agudo e pronto, como se lhe houvessem tocado com um ferro em
brasa.
E, empurrando com a cabeça D. Inigo, voltou a anca para a grade.
Pan! - foi o som que se ouviu. Com um só coice, a reixa estava
no chão, e as ombreiras de pedra tinham voado em mil rachas. Quer
m'o creiam, quer não, di-lo a história: eu com isto não
perco nem ganho.
D. Diogo, esse ficou-o crendo: porque uma lasca de pedra bateu-lhe
nos dois últimos dentes que tinha e meteu-lhos pela goela abaixo.
Por isso ele, com a dor, não podia dizer palavra. Seu filho fê-lo
cavalgar ante si, e, cavalgando após ele, bradou - " Meu pai,
estais salvo!
E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque Pois tinha bons quinze
palmos. Pela manhã não havia sinal de chuva; o ar estava
limpo e sereno, o quando os mouros foram ver o que sucedera a D. Diogo
Lopes não lhe acharam sequer o rasto.
6
Inigo e seu pai, o velho senhor de Biscaia, passam as portas de Toledo
com a rapidez da frecha: num abrir e fechar d'olhos ficam-lhes para traz
muros, torres, barbacãs e atalaias. A bátega vai diminuindo:
rasgam-se as nuvens, e vêem-se já reluzir algumas estrelas,
que parecem outros tantos olhos com que o céu espreita através
do negrume o que se passa cá em baixo.
A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se em leito
de torrente, nos plair os converteu-se em lago. Mas, quer pelos lagos quer
pelas torrentes, o valente onagro rompia avante, bufando como um
danado.
Não subiram bem um monte, já descem pelo outro recosto
abaixo; ainda bem não chegaram a uma clareira, já sentem
em profunda floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das árvores.
Pouco mais é de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam
o chão estrelado do céu já limpo, semelhantes aos
dentes de uma serra gigante capaz de dividir cérceo o hemisfério
austral do hemisfério boreal. E Pardalo investe, sempre em galope
desfeito. com as montanhas disformes. E desce aos vales temerosos, e cada
vez mais ligeiro, como o seu nome o indica, parece menos quadrúpede
que pássaro.
Mas que ruído e esse que sobreleva ao do vento:. Que e isso
que, lá ao longe, ora alveja ora reluz nas trevas, como uma alcatéia
de lobos envoltos em sudários brancos, com os olhos só descobertos,
e despregando em fio pelo fundo do vale abaixo ?
É um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com
as escamas angulosas de seu dorso eriçado, onde batem e chispam
os raios das estrelas em mil reflexos quebrados.
Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio -
" Será um marco, uma estátua ? - pensaram os cavaleiros.
Pinheiro não pode ser: não consta que em pontes nasçam."
Pardalo ria-se de rios: pontes, fazia tanto cabedal delas como de um
retraço de palha. Todavia, bem que pudesse de um pulo salvar vinte
ribeiras como aquela, foi-se direito à ponte: porque não
era animal que fizesse áfricas escusadas. Semelhante a relâmpago,
se arrojou o onagro aquele passo estreito. Mas, tá!... Ei-lo que
de repente pára. E tremia como varas verdes, e arquejava com violência:
os dois cavaleiros olharam.
O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte: por
isso Pardalo emperrava. Então, d´entre uns altos choupos,
que da margem d`além se meneavam, um pouco mais abaixo daquele
sítio, ouviu-se uma voz fadigosa e trêmula que cantava:
Para traz, para trás, a galgar.
Já!
De redor, de redor vem passar
Cá!
Que não ha nada aqui que te impeça.
Buz,
Nem palavra, vós dois!!
Fugi dessa Cruz !"
Santo Nome da Cristo! - exclamou D. Diogo, benzendo-se ao escutar aquela
voz que conhecia, mas que, depois de tantos anos, não esperava ali
ouvir porque seu filho não lhe dissera que meio achara para o salvar.
Apenas o grito do velho soou, assim ele como D. Inigo foram bater contra
o poial do cruzeiro onde ficaram de bruços envoltos em lodo. O onagro
ao sacudi-los de si, soltara um rugido de besta-fera. Sentiram então
um cheiro intolerável de enxofre e de carvão de pedra inglês,
que logo se percebia ser cousa de Satanás.
E ouviram como um trovão subterrâneo; e a ponte balançava,
como se as entranhas da terra se despedaçassem.
Apesar do seu grande terror, e de chamar pela Virgem Santíssima,
D. Inigo abriu um cantinho do olho para ver o que se passava.
Nós os homens costumamos dizer que as mulheres são curiosas.
Nós e que o somos. Mentimos como uns desalmados.
Que veria o cavaleiro? Um fojo aberto, bem próximo dele sobre
a ponte, e que depois rompia pela água.
E depois pelo leito do rio: e depois pela terra dentro, dentro; e depois
pelo teto do inferno, que outra coisa não podia ser um fogo muito
vermelho que reverberava daquela profundidade. Tanto era assim, que ainda
lá viu passar de relance um demônio com um desconforme espeto
nas mãos cm que levava um judeu empalado.
E Pardalo descia remoinhando por esse boqueirão como uma pena
caindo em dia sereno do alto do uma torre abaixo.
Aquela vista fez perder os sentidos a D. Inigo que indo também
a chamar por Jesus achou que não podia proferir este nome sagrado.
De terror, tanto o velho como o moço ficaram ali em desmaio. Quando
tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o sítio em
que se achavam. Era a ponte próxima á aldeia de Nusturio,
no alto da qual campeava o castelo construído por D. From o saxônio,
avoengo de D. Diogo Lopes e primeiro senhor de Biscaia.
Nenhum vestígio restava do que ali se passara; os dois moídos
e cheios de lodo o pisaduras, foram-se arrastando como puderam até
encontrar alguns vilãos a quem se deram a conhecer, e que
os levaram a casa.
Festas que em Nusturio se fizeram por sua vinda, coisa é que
não vos direi; porque não tarda a hora de cear, rezar e deitar.
7
D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas as semanas
se confessava. D. Inigo, porém, nunca mais entrou na igreja, nunca
mais rezou e não fazia senão ir a serra caçar.
Quando tinha de partir para as guerras de Leão, viam-no subir
a montanha armado de todas as peças e voltar de lá montado
num agigantado onagro.
E o seu nome retumbou em toda a Espanha, porque não houve batalha
em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum encontro foi ferido
nem derrubado.
Diziam à boca pequena em Nusturio que o ilustre barão
tinha pacto com Belzebu. Olhem que era grande milagre!
Meio precito era ele por sua mãe; não tinha que vender
senão a outra metade da alma.
Por oitenta por cento do lucro no recibo de um egresso, a dá
aí inteira ao demo qualquer onzeiro, e crê ter feito uma limpa
veniaga.
Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a história
não conta é o que então se passou no castelo. Como
não quero improvisar mentiras, por isso não direi mais nada.
Mas a misericórdia de Deus é grande. A cautela rezem
por ele um Pater e uma Ave. Se não lhe aproveitar, seja por mim.
Amém.
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