A Confissão de um filho do século
Alfred de Musset
 

Ao notar que aquela mulher se parecia com minha amante, uma idéia medonha, irresistível, se apoderou do meu cérebro doente. Realizei-a imediatamente.
Nos primeiros tempos do nosso amor, minha amante ia, de vez em quando, visitar-me às escondidas. Eram dias de festa para o meu quarto. Chegavam flores, acendia-se o fogo alegremente, e eu preparava uma boa ceia. A cama, igualmente, era nupcialmente enfeitada para a recepção da bem-amada. Muitas vezes, ficava eu a contemplá-la, sentado no meu sofá, durante as horas silenciosas em que nossos corações se falavam. Via-a, como a fada Mab, transformar em paraíso o pequeno espaço solitário em que tantas vezes eu chorara. Estava ali, no meio de todos aqueles livros, de todas aquelas roupas espalhadas, de todos aqueles móveis estragados, entre aquelas paredes tão tristes: como brilhava docemente em toda aquela pobreza!
Essas recordações, depois que a perdi, não cessavam de me perseguir; tiravam-me o sono. Meus livros,  minhas paredes, me falavam dela. Eu não podia suportá-los. Minha cama expulsava-me para a rua. Eu tinha medo, quando não chorava.
Foi para lá que levei aquela rapariga. Pedi-lhe que se sentasse de costas voltadas para mim. Mandei que ficasse seminua. Depois, arrumei o quarto, como outrora para a minha amante. Coloquei as poltronas no mesmo lugar em que me lembrava de terem estado uma noite. Geralmente, em todas as nossas idéias de felicidade, há uma certa recordação que domina: um dia, uma hora que superou todas as outras ou foi o seu tipo e modelo inolvidável. Chega um momento em que, diante de tudo isso, o homem exclama, como Teodoro na comédia de Lope de Vega: “Fortuna! Põe um prego de ouro em tua roda!”
Depois de tudo arrumado, acendi bem o fogo e, sentando-me sobre o calcanhares, começou a enervar-me um desespero sem limites. Desci até o fundo do meu coração, para senti-lo torcer-se, comprimir-se. E murmurei mentalmente uma ária tirolesa que minha amante costumava cantar:

Altra volta gieri biele,
Blanch’e rosa com’un flore,
Ma ora nò. Non son più biele,
Consumatis d’al’amore
Eu escutava o eco dessa pobre ária ressoar no deserto do meu coração. E dizia: “Eis a felicidade do homem. Eis o meu pequeno paraíso. Eis a minha fada Mab: uma rapariga das ruas. Minha amante não vale mais. Eis o que se acha no fundo do copo onde se bebeu o néctar dos deuses. Eis o cadáver do amor.”
Ouvindo-me cantar, a infeliz pôs-se a cantar também. Fiquei pálido como a morte. Aquela voz rouca e ignóbil, saindo daquele ser que parecia com minha amante, era como um símbolo do que eu sentia. Era o deboche em pessoa que lhe gaguejava na garganta, no meio de uma juventude em flor. Parecia-se que minha amante, depois de suas perfídias, devia ter aquela voz. Lembrei-me de Fausto, quando, ao dançar no Brocken com uma jovem feiticeira nua, viu um camundongo vermelho sair-lhe da garganta.
- Cale-se! – gritei-lhe, levantando-me e me aproximando-me dela. Ela sentou-se, sorrindo, na minha cama, e eu me estendi ao seu lado, como se fosse a minha estátua no meu túmulo.
Eu vos peço, a vós oh! homens do século, que, à hora que vos dirigirdes aos vossos prazeres, aos bailes ou à ópera, ou à noite, quando deitardes e lerdes, para adormecer, alguma conhecida blasfêmia do velho Voltaire,  alguma pilhéria razoável de Paul-Louis Courier, algum discurso econômico de uma comissão de nossas câmaras, em sua, ao respirardes, por algum dos vossos poros, as frias substâncias do monstruoso nenúfar que a Razão planta no coração  das nossas cidades – eu vos peço que, se acaso este livro obscuro cair em vossas mãos, não tenhais um sorriso nobre de desdém, nem sacudais muito os ombros, nem digais com muita segurança que me lastimo de um mal imaginário e que, afinal de contas, a razão humana é a mais bela das nossas faculdades e que de verdadeiro, no mundo, só há as agiotagens da bolsa, as casas de jogo, o vinho de Bordéus na mesa, uma boa saúde no corpo, a indiferença para com o próximo e, à noite, na cama, músculos lascivos cobertos por uma pela pergumada.
Um dia, por vossa vida estagnada e imóvel, pode passar uma rajada. A Providência pode lançar um sopro sobre as belas árvores, que regais com as águas tranqüilas de vossos rios de esquecimento. Podeis cair no desespero, senhores impassíveis. Há lágrimas nos vossos olhos. Não direi que vossas amantes vos possam trair: vosso desgosto seria tão grande como quando morre um cavalo. O que digo é que na Bolsa também se perde e, quando se joga numa carta, pode dar outra. E, caso não jogueis, pensais somente que os vossos escudos, a vossa tranqüilidade amoedada, a vossa felicidade de ouro e prata, se encontram na casa de um banqueiro que pode falir, ou em fundos públicos que podem não pagar. Finalmente, o que vos digo é que por mais frios que sejais, podeis ainda amar alguma coisa: pode afrouxar uma fibra no fundo de vossas entranhas e então soltareis um grito semelhante ao da dor. Um dia, errando nas ruas lamacentas, quando os prazeres materiais não existirem mais para gastar vossa força ociosa, quando o real e o cotidiano vos faltarem, pode acontecer que olheis em torno de vós com as faces encovadas e vos senteis, então, num banco deserto à meia-noite.
Oh! homens de mármore, sublimes egoístas, inimitáveis raciocinadores, que nunca praticastes um ato de desespero, nem cometestes um erro de aritmética! Se isso nunca acontece, lembrai-vos, na hora de vossa ruína, de Abelardo ao perder Heloísa. Ele a amava mais do que vós os vossos cavalos, os vossos escudos de ouro e as vossas amantes: ao separar-se dela, perdeu mais do que jamais perderíeis, mais do que nem mesmo o vosso príncipe Satã perderia se caísse novamente do céu. É que ele a amava com um certo amor de que os jornais não falam e cuja sombra as vossas mulheres e filhas não percebem em nossos teatros e em nossos livros. Passara a metade de sua vida beijando-lhe a fronte cândida, ensinando-a a cantar os salmos de Davi e os cânticos de Saul. E era só o que possuía sobre a terra. No entanto, Deus o consolou.
Podeis estar certos de que, nas vossas aflições, ao pensardes em Abelardo, não vereis com o mesmo olhar as doces blasfêmias do velho Voltaire e as pilhérias de Courier. Sentireis que a razão humana pode curar as ilusões, mas não cura os sofrimentos: Deus a fez boa dona de casa, não irmã de caridade. Verificareis que o coração do homem, ao dizer, “Não creio em nada, pois não vejo nada” não disse ainda a última palavra. Procurareis em torno de vós alguma coisa como uma esperança, e ireis sacudir as portas das igrejas para verificar se ainda estremecem, mas a encontrareis muradas. Pensareis em vos fazer trapistas, mas o destino zombando de vós, responderá com uma garrafa de aguardente e uma cortesã.
E, se beberdes a garrafa, se tomardes a cortesã e a levardes para a cama, pensai no que possa acontecer.
 
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