Ensaios – Livro I
Capítulo XVIII
Do Medo
Montaigne
omado de estupor, fiquei de cabelos arrepiados e sem voz.” (Virgílio). Não sou muito versado no estudo da natureza humana, como dizem, e ignoro de que maneira o medo atua em nós. certo é que se trata de estranho sentimento. Nenhum, afirmam os médicos, nos projeta tão precipitadamente fora do bom-senso. E em verdade vi muita gente tornada insensata pelo medo. Mesmo entre os mais assentados, provoca ele terríveis alucinações.

Ponho de lado o homem vulgar, ao qual faz o medo que ora veja seus antepassados saírem do túmulo, envolvidos em seus sudários, ora lobisomens, gnomos, quimeras. Mesmo, porém, entre os soldados, sobre os quais o medo deveria ter menor influência, quantas vezes não  transformou ele um rebanho em um esquadrão encouraçado? E caniços e bastões em policiais e lanceiros? E nossos amigos em inimigos, e a cruz vermelha em cruz branca?

Quando o Sr. de Bourbon tomou Roma, o porta-estandarte encarregado da guarda do subúrbio de São Pedro foi tomado de tal pavor à primeira alerta que, passando através de um buraco no muro em ruínas, saiu da cidade carregando seu estandarte e marchou ao encontro do inimigo, convencido de que se dirigia para o interior da praça forte. Vendo a gente do Sr de Bourbon se aprestar para a batalha, voltou a si e, na crença que os defensores tentavam uma sortida, virando as costas entrou de novo pelo mesmo buraco na cidade de que se afastara 300 passos. O porta-estandarte do capitão Júlio não se saiu tão bem quando o Conde de Bures e o Sr Du Reu tomaram São Paulo. Desesperado de medo, lançou-se fora da cidade pela canhoneira, de estandarte na mão, e foi dar em cheio nos assaltantes, que o fizeram em pedaços. Nesse mesmo sítio verificou-se um caso extraordinário: o medo surpreendeu, agarrou e a tal ponto paralisou um fidalgo que este caiu morto repentinamente, e sem o menor ferimento, do baluarte em que se  achava. Em um encontro dos germânicos com os alemães, duas frações importantes de suas tropas, postadas em pontos diferentes, fugiram apavoradas, em direção uma da outra e acabaram por se chocar.
Ora, o medo põe asas nos nossos pés, como no caso dos porta-estandartes, ora nos prega no solo e nos imobiliza, como aconteceu com o Imperador Teófilo. Batido em uma batalha contra os agarenos, ficou tão estupefato e transido que não podia decidir-se a fugir “tanto se apavora o medo daquilo que lhe pode ajudar”(Quinto Cúrcio). E assim permaneceu até que Manuel, um de seus principais chefes, o sacudiu como para acordá-lo de um sono e lhe disse: “Se não me seguires eu vos matarei; pois é melhor que percais a vida a serdes prisioneiro e correrdes o risco de perder o império.”

É principalmente quando sob a sua influência recobramos a coragem que ele nos tirara contra o que o dever e a honra determinavam, que o medo revela sua ação mais intensa. Na primeira batalha séria que tiveram – e perderam – os romanos contra Aníbal, sob o consulado de Semprônio, um exército de cerca de 10.000 infantes, tomado de pavor, debandou e, na sua covardia, não descobrindo por onde passar, jogou-se contra o grosso do inimigo. Tanto e tão bem fez que, depois de matar grande número de cartagineses, rompeu-lhes as fileiras, pagando uma fuga vergonhosa com os mesmos esforços que teriam de fazer para alcançar uma vida gloriosa.

O medo é a coisa de que mais medo tenho no mundo. Ele ultrapassa, pelos incidentes agudos que provoca, qualquer outra espécie de acidente. Que aflição será mais penosa e justificável do que a dos amigos de Pompeu, testemunhas em seu próprio navio de horrível massacre? No entanto, o medo que lhes causou a aproximação das velas egípcias abafou neles esse sentimento, a tal ponto que se observou terem pensado apenas em instar os marinheiros para que, à força de remos, lhes facilitassem a fuga até chegarem a Tyre e, já sem receios, tiveram o lazer de meditar sobre a perda sofrida e dar livre curso aos lamentos que as lágrimas que o medo, mais forte do que a dor, paralisara. Os que têm motivo para temer a perda de seus bens, o exílio ou a servidão, vivem em constante angústia. Não comem nem bebem, nem dormem, enquanto em idênticas circunstâncias, os pobres, os banidos, os servos, continuam a viver, não raro tão alegremente como de costume. Quantas pessoas, atormentadas pelas fustigações do medo, não se enforcaram, se afogaram ou se atiraram em precipícios., demonstrando ser o medo mais importuno e insuportável do que a própria morte!

Os gregos admitem um outro tipo de medo, que não provém de um erro de nosso raciocínio, mas ocorre sem causa aparente e por vontade dos deuses. E povos inteiros e exércitos inteiros o experimentam. Dessa ordem foi o que provocou em Cartago tão prodigiosa desolação. Só se ouviam gritos de pavor; os habitantes precipitavam-se fora de suas casas, como a um sinal de alarma, e se atacavam mutuamente, e se feriam, e se matavam, como se inimigos houvessem entrado na cidade. A desordem e o tumulto imperavam. E a isso, que só findou quando, mediante preces e sacrifícios, conseguiram acalmar a cólera dos deuses, chamam os gregos “terror pânico”.

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