MÊMNON OU A SABEDORIA HUMANA
Voltaire
m dia Mêmnon concebeu o insensato projeto de ser perfeitamente sábio. Não existe  ninguém a quem alguma vez não tenha passado pela cabeça esta loucura. Mêmnon  disse consigo mesmo:

- Para ser muito sábio, e por conseguinte muito feliz, basta não ter paixões; e nada  mais fácil, como se sabe. Antes de tudo, não amarei jamais mulher alguma, pois,  vendo uma beleza perfeita, direi com os meus botões: - Essas faces um dia se
cobrirão de rugas; esses belos olhos ficaram avermelhados em redor; esse colo redondo se tornará chato e pendente; essa bela cabeça ficará calva.

- Ora, basta-me vê-la agora com os mesmos olhos com que a verei então, e  seguramente esta cabeça não fará a minha andar à roda. Em segundo lugar, serei  sóbrio. Não terá efeito sobre mim a tentação da boa mesa, dos vinhos deliciosos, a
sedução da sociedade; bastará que eu me representa a conseqüência dos excessos -  cabeça pesada, estômago embrulhado, a perda da razão, da saúde e do tempo - e  então não comerei mais do que o necessário; minha saúde será sempre igual, minhas  idéias sempre puras e luminosas. Tudo isso é tão fácil que não há mérito algum em  alcançá-lo. Depois - dizia Mêmnon - é preciso  refletir um pouco em minha situação  pecuniária. Meus desejos são moderados; meus bens estão solidamente confiados ao  recebedor-geral das finanças de Nínive; tenho com que viver independente: eis aí o maior dos bens. Nunca me verei na cruel necessidade de cortejar: não invejarei ninguém e ninguém me invejará. Também é coisa fácil, portanto. Tenho amigos, continuava ele -, hei de conservá-los, pois nada terão que me disputar. Não me aborrecerei jamais com eles, nem eles comigo; nenhuma dificuldade nisso."

Havendo assim traçado em seu quarto o pequeno plano de sabedoria, Mêmnon pôs a cabeça à janela. Viu, perto de casa, duas mulheres que passeavam sob os plátanos. Uma era velha, e parecia não pensar em nada; a outra era jovem, linda, e parecia muito preocupada. Suspirava, chorava, e isto só lhe fazia aumentar o encanto. O nosso sábio sentiu-se comovido, não  pela beleza da dama (bem seguro estava ele de não sentir uma tal fraqueza), mas pela aflição em que a via. Desceu, achegou-se à jovem niniviana, na intenção de consolá-la com sabedoria. A bela criatura contou-lhe, com o ar mais ingênuo e comovente, todo o mal que lhe fazia um tio que ela não tinha; com que astúcias ele lhe arrancara um bem que ela nunca possuíra; e tudo o que ela podia recear da violência dele.

- Pareceis-me homem tão prudente – disse-lhe ela – que, se tivésseis a condescendência de me acompanhar a minha casa, e examinar os meus negócios, estou certa de que me tiraríeis do cruel embaraço que me encontro.

Mêmnon não hesitou em segui-la, para examinar sabiamente os seus negócios e dar-lhe um bom conselho. A dama aflita o conduziu a um quarto perfumado e, polidamente, fê-lo sentar com ela num largo sofá, onde se mantinham os dois de pernas cruzadas um diante do outro. A  dama falou baixando os olhos, donde por vezes saíam lágrimas, e que, erguendo-se,
se encontravam sempre com os olhares do sábio Mêmnon. Suas palavras eram cheiras  de um enternecimento que dobrava de ponto todas as vezes que os dois se fitavam.  Mêmnon tomava extremamente a peito os negócios dela, e sentia de momento a
momento o maior desejo de obsequiar pessoa tão honesta e tão desagradada. No calor  da conversação, deixaram insensivelmente de estar um diante do outro. Descruzaram-se-lhe as pernas. Mêmnon aconselhou-a de tão perto, fez-lhe advertências tão ternas,  que já não podia nenhum dos dois falar de negócios, nem sabiam mais onde se achavam.

Estavam assim quando chegou o tipo, como é fácil imaginar; vinha armado, da cabeça aos pés; e a primeira coisa que disse foi que ia matar, como de justiça, o sábio Mêmnon e a sua sobrinha; a última que lhe escapou foi que podia perdoar por muito
dinheiro. Mêmnon viu-se obrigado a dar tudo o que tinha. Felizes tempos aqueles em que se conseguia resgate por preço tão módico; a América ainda não tinha sido descoberta, e as damas aflitas estavam longe de ser perigosas como as de hoje.
Envergonhado e em desespero, Mêmnon retornou a casa; lá encontrou um bilhete que o convidava a jantar com alguns de seus amigos íntimos. – Se eu ficar em casa sozinho – pensou -, estarei com o espírito ocupado com a minha triste aventura, não
comerei, cairei doente; é melhor ir fazer com os meus amigos íntimos minha refeição frugal. Na doçura de seu convívio esquecerei a tolice que pratiquei esta manhã.” Vai ter com os amigos; acham-no um pouco triste. Fazem-no beber para dissipar a tristeza. Um pouco de vinho, tomado com moderação é remédio para a alma e para o corpo. Assim pensa o sábio Mêmnon; e embriaga-se. Propõem-lhe jogar, depois do repasto. Um jogo moderado com amigos é passatempo honesto. Joga, ganham-lhe tudo o que tem na algibeira e quatro vezes mais sob palavra. Trava-se uma disputa a propósito do jogo, acendem-se os ânimos: um de seus amigos íntimos atira-lhe à cabeça um copo de dados e vaza-lhe um olho. Levam o sábio Mêmnon para casa, bêbado, sem dinheiro, e com um olho a menos.

Ele curte um pouco a embriaguez; e apenas sente a cabeça mais livre, manda seu criado buscar dinheiro ao recebedor-geral das finanças de Nínive para pagar seus amigos íntimos; dizem-lhe que o recebedor fez pela manhã uma bancarrota fraudulenta, que deixa alarmadas cem famílias. Furioso, Mêmnon vai à corte com um emplastro no olho e um requerimento na mão, para pedir justiça ao rei contra o bancarroteiro. Encontra num salão diversas damas, que traziam, todas, com um ar desembaraçado, arcos de vinte e quatro pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia um pouco, disse, fitando-o de soslaio:
- Oh, que horror!

Outra, que o conhecia melhor, disse-lhe:

- Boa tarde, sr. Mêmnon; mas falando com franqueza, sr. Mêmnon, estou muito contente de vê-lo. A propósito, sr. Mêmnon, como perdeu o olho?
E passou sem esperar resposta. Mêmnon escondeu-se a um canto e esperou o momento em que pudesse atirar-se aos pés do monarca. Esse momento chegou. Beijou três vezes o chão, e apresentou seu requerimento. Sua Graciosa Majestade
entregou-o a um dos seus sátrapas para que este o informasse a respeito do caso. O sátrapa chamou à parte Mêmnon, e disse-lhe com ar altivo, amargamente escarninho:

- Eu acho graça, meu caolho, em te dirigires primeiro ao rei do que a mim, e acho ainda mais graça em ousares pedir justiça contra um honesto bancarroteiro que eu honro com a minha proteção. Abandona essa causa, meu amigo, se queres
conservar o olho que te resta.Havendo assim, pela manhã, renunciado às mulheres, aos excessos de mesa, ao jogo,
a qualquer disputa, e sobretudo à corte, Mêmnon tinha sido, durante a noite, enganado e roubado por uma bela dama, embriagado-se, jogado, tido uma disputa, perdido um olho e ainda zombado na corte.

Petrificado e ralado de dor, voltou com a morte na alma. Quer entrar em casa: lá encontra os meirinhos que lhe desmobiliavam a casa por parte dos credores. Posta-se quase sem sentidos, sob um plátano; lá encontra a bela mulher da manhã, que
passeava com seu caro tipo e que desatou a rir ao ver Mêmnon com o emplastro. Veio a noite; Mêmnon deitou-se sobre umas palhas junto às paredes de sua residência. Salteou-o a febre; durante o acesso, adormeceu e um espírito celeste apareceu-lhe em sonho.

Era todo resplandecente de luz. Tinha seis belas asas, mas não possuía pés, nem cabeça, nem cauda, e não se assemelhava a coisa nenhuma.

- Quem és? – disse-lhe Mêmnon.

- Teu bom gênio – respondeu-lhe o outro.

- Restitui-me então o meu olho, a minha saúde, os meus bens, a minha sabedoria, - disse-lhe Mêmnon.

A seguir contou-lhe como perdera tudo isso em um único dia.

- Eis aí aventuras que não nos acontecem nunca no mundo que habitamos – disse o espírito.

- E que mundo habitas?- indagou o homem aflito.

- Minha pátria está situada a quinhentos milhões de léguas do Sol, numa pequena estrela ao pé de Sírio, a qual tu avistas daqui.

- Belo país – exclamou Mêmnon – Quê! Não tendes entre vós loureiras que enganam um pobre homem, amigos íntimos que lhe ganham o dinheiro e lhe vazam um olho, bancarroteiros, sátrapas que zombam de vós recusando-vos justiça?

- Não – disse o habitante da estrela -, nada disso. Jamais somos enganados pelas mulheres porque não as temos; não nos entregamos a excessos de mesa, porque não comemos; não temos bancarroteiros porque não há entre nós nem ouro nem
prata; não nos podem vazar os olhos, porque não temos corpos à maneira dos vossos; e os sátrapas nunca nos fazem injustiça, porque em nossa pequena estrela todos são iguais.

Disse-lhe Mêmnon, então:

- Senhor, sem mulheres e sem jantares, em que empregais o vosso tempo?

- Em velar – respondeu o gênio – pelos outros globos que nos são confiados: assim é que venho aqui te consolar.

- Ah! Prosseguiu Mêmnon – por que não vieste a noite passada, para impedir-me de praticar tantas loucuras?

- Eu estava ao lado de Assan, teu irmão mais velho -, respondeu o ser celeste. Ele é mais digno de piedade do que tu. Sua Graciosa Majestade, o rei das Índias, em cuja corte tem a honra de estar, fez-lhe vazar os dois olhos por causa de uma
pequena indiscrição, e atualmente ele se acha num calabouço, de mãos e pés algemados.

- Vale bem a pena – disse Mêmnon – ter um bom gênio na família para que de dois irmãos um se torne caolho, o outro cego, um se veja deitado sobre palhas e o outro prisioneiro.

- Tua sorte mudará – replicou o animal da estrela. – Verdade é que serás sempre caolho; mas, ainda assim, serás muito feliz desde que não faças nunca o tolo projeto de ser perfeitamente sábio.

- Então isto é uma coisa impossível de alcançar? – exclamou Mêmnon suspirando.

- Tão impossível – respondeu-lhe o gênio – quanto ser perfeitamente hábil, perfeitamente forte, perfeitamente poderoso, perfeitamente feliz. Nós outros mesmos estamos bem longe disso. Há um globo onde tudo isto se encontra; mas
nos cem milhões de mundos que se acham dispersos no espaço, tudo se segue gradativamente. Tem-se menos sabedoria e prazer no segundo que no primeiro, menos no terceiro que no segundo, e assim por diante até o último, onde toda a
gente é completamente louca.

- Tenho muito receio – disse Mêmnon – de que o nosso pequeno globo terráqueo seja precisamente as casas de orates do Universo de que me dais a honra de falar-me.

- Inteiramente não – disse o espírito -, mas aproxima-se disso: é necessário que tudo esteja em seu lugar.

- Mas então – perguntou Mêmnon – certos poetas, certos filósofos, estão muito errados em dizer que tudo está bem?

- Eles têm toda a razão – disse de lá de cima o filósofo, considerando a organização do Universo inteiro.

- Ah! Não acreditarei nisso – retorquiu o pobre Mêmnon – senão quando deixar de ser zarolho.
 

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