Namorados
- Pois é verdade, minha querida disse Henriqueta se eu tivesse
uma expressão assim enfastiada ao ir passar o fim de semana com
o noivo (com quem se está para casar dentro de um mês) faria
o possível para modificar, ou esconder sentimentos, ou qualquer
coisa neste gênero.
- Cale-se disse Ester em tom intimidativo. E não me olhe.
- Vê lá, menina, não te dê alguma das tuas
raivas! Mas se queres saber o que te quis notar, olha-te no espelho.
Henriqueta, que era a mais nova e não estava ainda prometida,
pôs-se a assobiar uma música. Tinha vinte e um anos
e não queria arriscar a sua paz de espírito aceitando um
anel de noivado. Contudo, achava graça em ver Ester lançar-se
ao mar, segundo sua frase pitoresca. Esta é que já tinha
vinte e cinco anos, circunstância de certa gravidade.
O pior é que Ester, ultimamente, apresentava sua famosa expressão
de tédio em presença do simpático José: olheiras,
testa enrugada, etc. Quando a irmã se mostrava assim, Henriqueta
não podia evitar uma sensação de horror; confrangia
seu coração, detestava aquilo. Chegava a se sentir amedrontada.
O que eu queria dizer continuou ela era isto: que parece deslealdade
com José essa cara com que tu o recebes. Arranje outra, ou então...
Calou-se, porém. Ia dizer: Ou então, desiste. Mas a
verdade é que se interessava pelo casamento da irmã. Uma
vez realizado, seria um peso que lhe tiravam da cabeça!
Sentou-se na cama, ergueu o queixo, e compôs uma face suave,
de anjo meditabundo. Era deveras amiga da irmã, e o ar maçado
desta afligia-a com maus prenúncios.
- Olha para mim, Ester. Queres que vá contigo a Markbury? Não
me importo de ir, se quiseres.
- Minha querida, que vantagem haveria nisso? exclamou a noiva, desesperada.
- Julguei que podia pôr obstáculo as intimidades, que
tanto te maçam...
Ester ripostou como uma gargalhada falsa, motejadora.
- Não sejas criança, Henriqueta! comentou ela.
E Ester foi sozinha para o Wiltshire, onde o seu José havia
acabado de adquirir uma pequena fazenda, pensando no casamento. Depois
de ter sido militar, sentira-se cansado e doente; além disso, Ester
nunca havia estado em uma vila suburbana. Todas as mulheres idealizam o
seu lar através do anel de casamento. Ester apenas o antevia de
esguelha, e tão longe!
José construíra o seu bangalô de madeira, em grande
parte com suas próprias mãos. Em um dos extremos do terreno
passava um riacho, junto de dois salgueiros antigos. Aos lados havia telheiros
pintados de castanho e capoeiras. Em um recinto vedado com arame ficavam
os porcos e, mais adiante, duas vacas e um cavalo. Eram, enfim, trinta
e tantos acres de terra e só com um rapaz para ajudá-lo.
Já se sabe, contava também com Ester.
Tudo aquilo tinha um ar moderno e asseado. José era trabalhador.
Ele mesmo transparecia juventude e limpeza, parecia saudável e satisfeito
consigo próprio. Não chegava a ver a tal expressão
enfastiada. Ou, se a via, se limitava a dizer:
- Acho-te com certa fadiga, Ester. A vida da cidade te cansa mais que
a mim. Quando vieres para cá, serás outra moça.
- É possível respondia Ester.
Ela também gostava do lugar. Gostava das galinhas brancas e
das amarelas, dos porcos e do resto. Os ramos dos salgueiros levavam até
o chão as suas folhas de lâminas finas. Ester adorava isso,
assim como a folhagem morta que se despregava das árvores.
Disse a José que tudo se lhe afigurava delicioso, belo, imponente.
Ele ficou encantado. Adaptara-se plenamente a essa vida.
A mãe do ajudante serviu-lhes almoço. De tarde, Ester
e o noivo gozaram o sol e fizeram mil e uma tarefas; depois, ela enxugou
a louça que a mãe do rapaz havia lavado.
- Não falta muito! repetiu Ester, cirandando na minúscula
cozinha de paredes de madeira.
A mulher foi embora. Depois do chá, o rapaz também partiu,
e José e Ester recolheram as galinhas e os porcos. Caía a
noite. Ester entrou em casa e preparou a ceia, arranjando um pouco de fruta
cozida. José acendeu o fogão da sala de estar e considerou-se
uma pessoa importante e satisfeita.
Os dois deviam ficar sós no bangalô até que o ajudante
regressasse, na manhã seguinte. Seis meses antes, Ester teria achado
adorável. Sentiam-se tão bem juntos! Haviam sido amigos desde
muito novos, as respectivas famílias davam-se bem. José era
pacato, sério; nada se podia recear dele. Nem dela. Graças
a Deus!
Mas agora, infelizmente, desde que lhe prometera casamento, José
cometera o erro de se apaixonar por Ester. Antes nunca fora assim. E, se
ela adivinhasse que tal aconteceria, teria dito com franqueza: Continuemos
amigos, José; isso é uma inferioridade. Uma vez ele pôs-se
a acarinhá-la, a
Beijá-la. Ester achou a cena intolerável mas compreendeu
que seu dever seria suportar.
- Tenho pena, Ester disse ele que não estejas enamorada
de mim como eu estou de ti.
- Ora adeus! exclamou ela Se não estou, é caso para
te regozijares. É tudo quanto te digo.
Ouviu esta observação certeira, mas não lhe deu
todo o valor. Nunca encarava as coisas como deviam ser: abertamente. Atenuava-as,
deixando-as no escuro, e achava que assim era melhor. Melhor para ele,
é claro.
José era bastante competente em automóveis, em lavoura
e noutros conhecimentos. E Ester devia ter um organismo tão complexo
como um carro! Toda ela estava cheia de muitas e sutilíssimas válvulas
e magnetes e aceleradores e de tudo mais que lhe constituía o ser.
Se, ao menos, pudesse conduzi-la com cuidado com que guiava seu automóvel!
Era preciso pô-la em marcha e dar um jeito certo ao guiador. A própria
Ester sentia que necessitava de umas voltas a manivela, para seguir na
estrada matrimonial com o seu José. Ele, no entanto que insensato
sentava-se em um carro parado e supunha estar fazendo muitos quilômetros
a hora.
Naquela noite, a moça ficou bastante desesperada. Trabalhara
com ele toda a tarde e gostara de se sentir na sua companhia. Mas agora
que estavam sozinhos essa estúpida salinha, e o fogão confortável,
e o José, e o cachimbo do José, e o ar asseado do José,
tudo lhe pareceu insuportável.
- Vem sentar aqui, minha filha convidou ele em tom persuasivo, indicando
um canto do sofá a seu lado. E ela, porque acreditava que uma senhorita
decente se consideraria contentíssima em aceitar, foi e sentou-se
junto do noivo. Mas estava furiosa. Que desaforo. Que descaramento, isso
de ter um sofá. Ester odiou a vulgaridade dos sofás.
Aturou-lhe em seguia o amplexo do braço, que lhe cingiu a cintura,
e certa pressão que presumiu ser uma carícia. Ester pensou
que nada haveria mais insípido do que a cara dele, agora que a sua
franqueza e retidão estavam ausentes. Que ridícula a maneira
de lhe afagar o pescoço! Que idiotice essa de quererem imitar pombinhos.
Gostaria de saber que doces banalidades Lord Byron, por exemplo, teria
murmurado ao ouvido das suas eleitas. Esse não havia de ter sido,
com certeza, nem tão jovial nem tão incompetente. Que monstruosidade,
beija-la daquela maneira!
- Preferia que tocasses qualquer coisa para eu ouvir, disse ela, esquivando-se.
- achas que é preciso tocar esta noite, minha querida?
- Por que dizes esta noite? Gostava tanto de ouvir Tchaikowsky... qualquer
música que me desperte!
José levantou-se, obediente, e sentou-se ao piano. Tocou muito
bem e ela ouviu-o. Tchaikowsky podia conservá-la desperta toda a
noite. Se Ester já estava desesperada com o aspecto amoroso de José,
depois da música é que então a coisa se agravou.
- Que lindo! exclamou Agora toca o meu noturno favorito.
Enquanto ele se concentrava a premer as teclas, Ester escapuliu para
o ar livre.
Ah! Que suspiro de alívio ao respirar a atmosfera suave de outubro!
A escuridão era intensa; a ocidente luzia um crescente de lua. Não
mexia uma folha; as trevas jaziam sobre a terra como uma espécie
de nevoeiro.
Ester sacudiu o cabelo e foi se afastando da casa, que ressoava toda,
agora, com o seu noturno favorito. O que ela queria era por-se fora do
alcance das notas.
Que noite adorável! Abanou outra vez a cabeça e sentiu-se
disposta a arremessar-se ao infinito embora o infinito fosse um campo
pertencente a uma fazenda ao lado. Ester, porém, deliciava-se na
contemplação da lua distante.
- Oh, partir para longe, para o além! Reconheço que
sou idiota disse para si.
Todavia, continuou embebida nas suas fantasias. Se houvesse outra solução,
fora do romantismo de José! Sim, que noivo ridiculamente apaixonado!
Havia, contudo, cavalos soltos naquele campo, e ela, cautelosamente,
voltou para acerca do noivo. Aquilo definia-o bem: ter um terreno tão
acanhado que não podia fugir ao som do piano sem invadir a propriedade
alheia.
Quando chegou junto do bangalô, o piano, de súbito, calou-se.
Oh, céus! Ester olhou em roda, desnorteada. Um dos velhos salgueiros
inclinava-se para o riacho. Ela agachou-se, rastejou e, com a ligeireza
de um gato, foi trepando no tronco até a espessura da folhagem.
Mal se havia colocado em posição razoável quando
José surgiu de dentro de casa e se pôs a procurá-la.
Que atrevimento! Ester manteve-se quietinha, como um morcego entre as folhas
da árvore, espiando, vendo-o errar de cabeça nua e ar aparvalhado,
em busca dela. Onde estava a sua suposta magia varonil? Por que se mostrava
tão perplexo?
- Ester!- chamava ele, com voz meiga. Onde te meteste?
Começava a zangar-se. A moça conservou-se na árvore,
afetando indiferença. Não tinha a menor intenção
de responder. Era como se ele não existisse. E José prosseguia
na busca, vagamente infeliz.
Ela, então, teve o seu escrúpulo de consciência.
Na verdade pensou é cruel a maneira como o trato. Coitado do
José. E, dentro da sua alma, repercutiam-se essas vozes conciliadoras.
Mas, apesar disso, não lhe agrava recolher a casa e passar a noite
com ele, um frente ao outro.
É absurdo admitir a possibilidade de me apaixonar por esse
rapaz. Antes queria meter-me no chiqueiro. É tão aflitivamente
vulgar! Na realidade, isso é prova que, no fundo, não me
tem amor.
Este pensamento, uma vez suscitado, já não a largou.
O próprio fato da sua denguice prova que não me ama. Nenhum
homem que ame uma mulher a namora desta maneira. Chega a ser insultante!
Pensou assim e começou a chorar. Escorregou-lhe um pé
e esteve quase caindo. Com isto, voltou a compenetrar-se na realidade.
Viu-o, então, à distancia, de regresso à casa,
aquela imagem amargurou-a Para que arranjou toda esta embrulhada? Eu jamais
quis casar, fosse com quem fosse, e nunca dei ensejo a que se enamorassem
de mim! Sou muito infeliz! Serei anormal? A maioria das moças passa
por esta fase do namoro. A maioria deve ser normal. De forma que eu não
sou, e além disso, trepei a uma árvore. Detesto-me. Quanto
a José, estragou tudo o que existia entre nós e conta forçar-me
ao casamento. É de perder a cabeça! Que vida a minha! Odeio
essas confusões!
Derramou algumas lágrimas, e entretanto ouviu fechar-se, com
estrondo, a porta do bangalô. José entrara em casa, justamente
ressentido. E novo receio de apoderou da moça.
O salgueiro era desconfortável. O ar da noite estava frio e
úmido. Se apanhasse outra constipação haveria de fungar
todo o inverno. Através da janela vinha a luz do interior e Ester
disse entre dentes:
- Diabos me levem!
Aquilo significava que não se sentia muito à vontade.
Deslizou pelo tronco, esfolou um braço e rasgou decerto as meias
as suas meias mais bonitas. Que raio!, exclamou com ênfase, preparando-se
para ir fazer companhia ao noivo.
Neste momento ouviu-se o ruído de um carro na vereda e um toque
de buzina. Os faróis projetaram-se no portão da fazenda.
- Que atrevimento! Que descaro! Isto é Henriqueta que vem ter
comigo!
E correu pelo passeio como uma bacante.
- Olá, Ester! gritou a voz juvenil de Henriqueta, vinda da
obscuridade do carro. Como vai isso?
Que descaro! murmurou a outra. Que atrevimento! E abriu o portão,
arquejante.
- Como vai isso? repetiu a irmã.
- Que queres dizer? perguntou Ester.
- Não, filha, não te exaltes! Não julgues que
viemos meter o nariz nos teus negócios. Vamos acampar na propriedade
de Bonamy. O tempo está divinal.
Bonamy era companheiro de José e também antigo militar,
que se instalara em uma herdade, mais adiante. José, sem dúvida,
fazia figura de Crusoé, metido no seu bangalô.
- Como vão vocês?
- Menos mal replicou Donaldo, irmão de José. Estava
ao volante e Henriqueta ia ao lado dele.
- O mesmo para variar acudiu Eduardo, colocando a cabeça fora
do automóvel. Este era primo em segundo grau.
- Muito bem resumiu Ester, acalmando-se Agora, que estão
aqui, suponho que hão de querer entrar. Já comeram?
- Comemos, sim respondendo Donaldo. E não queremos incomodar.
Não se preocupe conosco.
- Por que não? replicou a moça, pronta para discutir.
- Temos medo do mano José explicou Donald.
- Além disso, Ester atalhou Henriqueta bem sabes que não
nos deseja aí.
- Henriqueta, não sejas tola! Entrem e deixem de pieguices.
- Não, Ester disse Donald.
- Não, senhora disse Eduardo.
- Que grandes parvos! Por que não? insistiu Ester.
- Por causa do mano mais velho repetiu Donald.
- Perfeitamente rematou Então eu é que vou com vocês.
- Posso espreitar? indagou Henriqueta, estendendo uma perna fora
do carro. Tenho curiosidade de ver isto.
A noite estava mais escura, porque a Lua havia desaparecido. As duas
moças seguiram em silêncio o passeio que conduzia até
a casa. Henriqueta ia ansiosa. O seu cerebrozinho perturbara-se e ela ambicionada
qualquer coisa que a esclarecesse melhor. Ester não dizia nada,
mas deixou que a irmã lhe tomasse o braço. Por fim, desembaraçou-se
da outra e ordenou:
- Sê normal, minha querida.
Depois deus três passos para a porta do bangalô, que abriu
e através da qual puderam ver a saleta alumiada e José em
uma poltrona, de costas para elas. Não voltou a cabeça quando
entraram.
- Aqui está Henriqueta exclamou a noiva, em um tom que significava:
Que há de novo?
José levantou-se e encarou-as com olhar zangado.
- Como chegou até aqui? perguntou rudemente.
- De automóvel respondeu a pequena, com o seu ar de inocência.
- Com Donald e Eduard, que estão lá fora acrescentou
Ester. A malta toda!
- Vão entrar? Inquiriu o dono da casa, preocupado.
- Suponho que não deixarás de lhes fazer o convite.
José ficou pensando, sem se mexer.
- Bem sei que é desagradável esta intromissão
disse Henriqueta, com entoação humilde Íamos a
caminho da herdade de Bonamy. Mirou em volta da sala, sempre com olhos
inocentes, e disse: - Isto é realmente delicioso, de muito bom gosto.
Agrada-me imenso. Deixa-me aquecer as mãos?
José, que estava de chinelas, afastou-se para lhe dar lugar.
Henriqueta estendeu as mãos, vermelhas de frio, na direção
do lume.
- Não me posso demorar declarou.
- Oh, não vás... acudiu a irmã, sem grande convicção.
- Tenho que ir. Donald e Eduard estão à espera. Como
a porta ficara aberta, viam-se além os faróis do automóvel.
- Oh! continuou Ester, no mesmo tom. Dize-lhes que ficas comigo
esta noite. Preciso um pouco de companhia.
José olhou para ela.
- Que brincadeira é essa?
- Não é brincadeira. Já que a Henriqueta chegou,
bem podia ficar...
- Oh, Ester! bradou a outra. Vou com Donald e Eduard à fazenda
Bonamy.
- Não irás, se eu quiser que fiques comigo.
Henriqueta pareceu surpresa, mas já resignada.
- Que brincadeira é essa; - repetiu José Vocês
combinaram passar aqui a noite, de sociedade?
- Não, José, palavra de honra! volveu Henriqueta, com
alvoroçada inocência Nem eu tinha idéia de sair,
quando Donald se lembrou disso esta tarde, as quatro horas. Mas o tempo
estava tão bom, apetecia-me sair...
- E, se tivéssemos combinado não seria nenhum crime
retrucou Ester De qualquer maneira, já que vocês estão
aqui, acho preferível acamparem aqui mesmo.
- Não, Ester! Donald não consentiria. Ficou zangado comigo
por causa desta demora... Fui eu quem tocou a buzina. Não foi ele,
fui eu. Curiosidade feminina, em suma. E agora, adeus. Boa noite!
Aconchegou o casaco e dirigiu-se lentamente para a porta.
- Nesse caso, vou contigo declarou Ester.
- Oh, filha replicou a irmã. E olhou para José.
- Sei tão pouco como você o que isto quer dizer... começou,
como que desculpando-se.
- Ester! exclamou Henriqueta Sê mais sensata. Há qualquer
mal-entendido. Por que não explicas? E dizes-te pessoa normal. Parece
que andas brincando com os outros.
Seguiu-se um silêncio teatral.
- Que sucedeu? continuou Henriqueta , com os olhos muitos brilhantes,
aflita.
- Nada respondeu a irmã, com entoação irônica.
- E você, que diz? inquiriu Henriqueta, voltando-se para o
rapaz, pesarosa, qual uma segunda Pórcia.
Por momentos José considerou como Henriqueta era mais simpática
do que a noiva.
- Só sei que ela me pediu que tocasse piano, e a seguir desapareceu
de casa. Desde então parece que não regula bem do miolo.
- Ah! Ah! Ah! E Ester rompeu em uma gargalhada falsa, melodramática
Gosto disso! Gosto dessa fuga. Fui lá para tomar ar fresco. Queria
que eu explicasse o que é isso de não regular bem do miolo.
- A verdade é que fugiste de casa.
- Sim? E por que?
- Calculo que tiveste as tuas razões.
- Pois tinha, e de primeira ordem.
Houve uns instantes de espanto. José e Ester conheciam-se toa
bem havia já tanto tempo. E agora uma coisa daquelas!
- Mas por que o fizeste? perguntou Henriqueta, com a mais ingênua
das entonações.
- Por que o fiz?
A buzina do automóvel começou a dar sinal de impaciência.
- Estão chamando por mim. Adeus! disse Henriqueta, apertando
o casaco e voltando-se para a porta.
- Se fores, irei contigo declarou Ester.
- Mas por que? insistiu a irmã, espantada.
A buzina continuava a dar sinal. A moça abriu a porta e gritou
para fora:
- Só mais um minuto! Fechou a porta, devagar, encarou outra
vez a irmã, sempre perplexa.
- Mas por que, Ester?
Os olhos de Ester, com o desespero, até pareciam vesgos. Mal
podiam suportar a cara de pau do indignado José.
- Por que?
- Sim, por que? repetiu Henriqueta.
Toda a atenção recaía sobre Ester. Mas Ester mantinha-se
impenetrável.
- Por que?
- Ela nem o sabe sugeriu José, proporcionando uma evasiva.
A interpelada riu outra vez, de forma melodramática, sinistra.
- Não sabe não! o rosto dela tomou uma expressão
furiosíssima. Pois bem, se pretendem saber, direi que não
posso aturar esta espécie de namoro, se tal é o nome que
isso tem.
Henriqueta largou a mão da porta e caiu numa cadeira, sem forças.
A coisa ia de mal a pior. O rosto de José tornou-se escarlate,
e depois empalideceu até ficar amarelo.
- De maneira que não podes casar com ele comentou Henriqueta.
- Não posso casar, se ele insistir em se mostrar apaixonado.
Pronunciara esta palavra de forma insidiosa.
- E não há possibilidade de casamento, sem isso? inquiriu
o anjo da guarda Henriqueta.
- Não. Aceitei-o perfeitamente enquanto ele não se apaixonou.
Agora o caso é diverso.
Houve uma pausa. Henriqueta daí a pouco, volveu:
- No fim das contas, Ester, é natural que o homem se enamore
da mulher com quem está para casar.
- Então é melhor que guarde isso para si. Eis tudo quanto
tenho a dizer.
Novo intervalo. José, silencioso, como sempre, olhava com expressão
ainda estúpida e zangada.
- Mas ouve, Ester: não concebes que um homem se apaixone por
ti? indagou a irmã.
- Por mim, não. Não admito a hipótese.
Henriqueta suspirou, desanimada.
- Então não podes casar com ele. Evidente. Que pena!
Outra pausa.
- Não há nada mais humilhante para uma mulher do que
um homem enamorado declarou Ester Detesto semelhante coisa.
- É porque talvez esse homem não te agrada lembrou
Henriqueta, com tristeza, relanceando a vista pelo pobre José.
- Creio que não toleraria nada disso, fosse com quem fosse.
Henriqueta, fazes idéia do que é ser acariciada e beijada?
- Calculo replicou a outra, pensativa. Como se fôssemos um
pedaço de carne e viesse um cão lamber-nos antes de nos engolir.
É repugnante, concordo.
- E o que é pior é um homem decente, perfeito cavalheiro,
enveredar por esse caminho. Nada mais terrível do que apaixonado!
exclamou Ester.
- Compreendo o que dizes atalhou a irmã É próprio
dos cães.
A buzina do carro tocava desesperadamente. Henriqueta ergueu-se, abriu
a porta e, chamando em voz alta pelos amigos, penetrou na escuridão.
- Vão andando, não esperem. Irei depois.
- Quanto tempo te demoras com eles? ouviu-se uma voz perguntar, à
distância.
- Não sei. Mas não deverei tardar.
- Vê se apareces antes de uma hora.
- Está bem.
A porta fechou-se. Então Henriqueta, desiludida, sentou-se e
ficou calada. Faria companhia à irmã. E aquele idiota do
José, pespegado ali junto a parede, como uma cabeça de veado.
Ouviram o automóvel partir, descendo a vereda.
- Os homens são imbecis murmurou Henriqueta, em tom de desânimo.
- Seja como for, há um equívoco disse José,
de repente, com amarga entoação. Eu não estou apaixonado
por você, Miss Clever.
As duas moças olharam para ele como se fosse Lázaro ressuscitado.
- Nunca estive enamorado de sua pessoa, assim dessa maneira prosseguia
ele. Os olhos cintilavam-lhe com uma chama de cólera e vergonha...
e de dura paixão.
- Então, foi mentiroso! Eis o que tenho a dizer proclamou
Ester.
- Quer dizer que tudo isto foi fingido? perguntou Henriqueta, espantada.
- Julguei que ela me quisesse assim replicou ele, com um sorrisinho
indecente que paralisou completamente as duas.
Se José se houvesse transformado em cobra, o espanto delas não
teria sido maior. Que sorriso escarninho! Grande patife!
- Pensei que ela quisesse que eu fosse assim repetiu o rapaz, sempre
trocista.
Ester sentiu-se horrorizada.
- Portou-se muito mal! observou Henriqueta.
- Que mentiroso! comentou Ester. E comprazia-se em semelhante coisa!
- Crês que sim, Ester? inquiriu Henriqueta.
- De certa maneira, é verdade confessou ele. Mas não
o teria feito se soubesse que ela não gostava.
Ester levantou os braços ao ar.
- Henriqueta! bradou ela Por que não matamos?
- Que m dera poder respondeu a outra. E atreveu-se... sabendo como
a moça é assim tão severa... e que você a amava
por esse seu feitio... e que iam unir-se para toda a vida... você...
você... você... aproveitar-se dalguma forma... fazer-se de
Rodolfo Valentino!
- Já morreu, coitado. E nunca simpatizei com ele disse Ester.
- Não parecia... atalhou José.
- De qualquer forma, o senhor não é Rodolfo Valentino...
e eu detesto-o no papel de galã.
- Não apanha outra oportunidade. Detesto-a também.
- Que alívio ouvir confessar uma coisa dessas, meu amigo!
Houve um silêncio demorado, após o qual se ouviu Henriqueta
declarar, com decisão:
- Bem, acabou-se. Queres vir comigo à fazenda Bonamy, Ester?
Ou devo ficar aqui contigo?
- Não vale a pena volveu Ester, em ar de bravata.
- Também acho que não vale a pena acudiu José
Mas deixe-me dizer: da sua parte foi muito mal feito não ter me
prevenido.
- Julguei que o senhor era sincero e não quis ofendê-lo.
- Fala de tal maneira que se pensaria nunca desejar ofender-me.
- Oh, agora o caso é diferente, visto que tudo foi fingido.
Calaram-se. O relógio, na sua qualidade de relógio da
casa, fazia um tique-taque apressado.
- Seja como for recomeçou José a senhora desiludiu-me.
- Ainda bem! gritou Ester visto que esteve brincando comigo.
Fitaram-se. Conheciam-se ambos muito bem.
Porque havia experimentado ele representar este estúpido papel
de apaixonado? Fora uma traição à intimidade que entre
os dois existia. José compreendia isso, e arrependia-se.
Ela, por seu lado, lia nos olhos do rapaz o amor puro e paciente que
ele lhe votada, e o seu desejo calmo, estranho, mas verdadeiro. Era a primeira
vez que reparava neste desejo tranqüilo, paciente, sincero, do homem
que havia sofrido durante os primeiros anos da juventude e que procurava
o sossego presentemente. Subiu-lhe no coração uma onda de
sangue. Sentia-se irmanada com ele.
- Que decidiste, Ester? pergunta a irmã.
- Afinal, fico com José respondeu ela.
- Bravo! exclamou Henriqueta Entoa vou eu à Bonamy.
Abriu a porta, muito devagar, sair.
José e Ester olharam-se a certa distância.
- Desculpe disse o rapaz.
- Bem sabes, José explicou ela que não me importo
com o que tu fazes uma vez que goste de mim a valer.
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