Um dia – era o primeiro aniversário de seu casamento – eles saíram
juntos para ver as escavações do Forte Romano em Newstead.
Não era um lugar particularmente pitoresco. Da ribanceira norte
do Tweed, exatamente onde o rio forma uma curva, estende-se uma rampa
suave de terra arável. Através desta corriam os valos dos
escavadores, expondo, aqui e ali, velhos trabalhos de pedra, indicando
os alicerces das antigas muralhas. Havia sido um lugar enorme, pois o acampamento
possuía cinqüenta acres de extensão e o forte, quinze.
De qualquer modo, tudo era fácil para eles, uma vez que o Sr. Brown
conhecia o fazendeiro proprietário da terra. Sob sua direção,
passaram uma longa tarde de verão inspecionando as valas, as covas,
as muralhas e toda a estranha variedade de objetos que esperavam ser transportados
para o Museu de Antigüidade de Edimburgo. A fivela de um cinturão
de mulher havia sido desenterrada naquele mesmo dia e o fazendeiro estava
discorrendo sobre isto, quando seus olhos se fixaram no rosto da Sra. Brown.
- Sua boa senhora acha-se cansada, disse ele. Talvez seja melhor descansar
um pouco antes de continuar.
Brown olhou para a esposa. Ela estava pálida, certamente, e
seus olhos escuros, luminosos e estranhos.
- O que é Maggie? Cansada? Acho que é hora de regressarmos.
- Não, não, John, continuemos. É maravilhoso.
Igual a um país de sonho. Tudo parece estar tão chegado e
perto de mim. Quanto tempo os romanos permaneceram aqui, Sr. Cunningham?
- Longo tempo, senhora. Se a senhora visse as covas de lixo das cozinhas,
compreenderia que levaria muito tempo para enchê-las.
- E por que eles partiram?
- Bem, senhora, por todos os sinais, partiram porque tiveram de o fazer.
O povo das vizinhanças não podia suportá-los mais,
por isso levantaram-se e queimaram o forte. Pode ser a marca de fogo nas
pedras.
A mulher estremeceu ligeiramente.
- Uma noite feroz... horrível, disse ela. O céu devia
estar vermelho aquela noite... e estas pedras cinzentas também.
- Sim, acho que se encontravam rubras, disse seu marido. É uma
coisa estranha, Maggie, e talvez fossem suas palavras que a ocasionasse;
mas pareço ver este incidente mais claro do que jamais vi qualquer
coisa em minha vida. A luz brilhava na água.
- Sim, a luz brilhava na água. E a fumaça agarrava-se
à garganta. E todos os selvagens estavam gritando.
O velho fazendeiro começou a rir.
- A senhora escreverá uma história acerca do velho forte,
disse ele. Eu o tenho mostrado a mais de um indivíduo, mas nunca
ouvi explicação tão clara. Algumas pessoas têm
o dom.
Haviam bordejado a margem do fosso, e um poço abria sua boca
à direita deles.
- Aquele poço possui 14 pés de profundidade, disse o
camponês. Imaginem o que retiramos do fundo? Bem, era somente o esqueleto
de um homem com uma lança ao lado. Penso que a empunhava quando
morreu. Ora, como pode um homem com uma lança achar-se num buraco
destes? Não estava enterrado, porque eles queimavam seus mortos.
Que conclui disso, senhora?
- Ele saltou ao fundo para livrar-se dos selvagens, disse a mulher.
- Bem, é plausível e um dos professores de Edimburgo
não poderia apresentar melhor explicação. Gostaria
que estivesse aqui, senhora, para responder às nossas dificuldades.
Aqui está o altar que encontramos semana passada. Há uma
inscrição. Disseram-me que é latim que significa que
os homens deste forte agradecem a Deus por sua segurança.
Examinaram a velha pedra gasta. Havia dois VV largos e profundamente
entalhados, no topo.
- Que significam estes dois VV, perguntou Brown.
- Ninguém sabe, respondeu o guia.
- Valeria Victrix, disse a senhora, suavemente. Seu rosto se
encontrava mais pálido que nunca, os olhos muito distantes, como
quem observa pelas passagens obscuras das abóbadas dos séculos.
- Que é isto? perguntou o marido, asperamente.
Ela estremeceu como alguém que acorda de um sono.
- Acerca de que falávamos? perguntou.
- Destes VV na pedra.
- Não há dúvida de que é somente o nome
da legião que erigiu o altar.
- Sim, mas você lhe deu um nome especial.
- Realmente? Que absurdo! Como poderia eu saber qual era o nome?
- Você disse algo... Victrix, suponho.
- Acho que estava conjecturando. Este lugar me dá o sentimento
singular de não ser eu própria, mas outra pessoa.
- Sim, é um lugar misterioso, disse seu marido, olhando ao redor
com uma expressão quase de medo em seus olhos cinzentos e agressivos.
Também sinto isto. penso que somente lhe desejaremos boa noite,
Sr. Cunningham, e regressaremos a Melrose.
Nenhum deles pôde sacudir a estranha impressão que lhes
havia sido deixada, pela visita às escavações. Era
como se algum miasma houvesse subido daquelas valas úmidas e passado
ao sangue deles. Toda a tarde permaneceram silenciosos e pensativos, mas
os poucos comentários que faziam mostravam que o mesmo objeto ocupava
a mente de cada um. Brown passou a noite sem repouso na qual teve um sonho
estranho e bem concatenado, tão vívido que ele acordou transpirando
e tremendo como um cavalo amedrontado. Tentou descrevê-lo à
sua mulher quando se sentaram para o lanche, de manhã.
- Foi a coisa mais clara, Maggie, disse ele. Nada que me aconteceu
quando acordado tem sido mais claro do que isto. sinto-me como se
estas mãos estivessem pegajosas de sangue.
- Conte-me devagar, disse ela.
- Quando começou eu estava numa encosta. Encontrava-me deitado
no chão. Este era áspero e havia moitas de urzes. Tudo ao
meu redor era somente escuridão, mas eu podia ouvir o sussurro das
respirações dos homens. Afigurava-se uma grande multidão
em ambos os lados ao meu redor, mas não podia ver ninguém.
Às vezes, havia um baixo tinido de aço, e então um
número de vozes sussurrava “Silêncio!”. Eu tinha uma clava
nodosa na mão e esta era guarnecida de pontas de ferro na extremidade.
Meu coração batia rapidamente, e eu sentia que pairava um
momento de grande perigo. Uma vez deixei cair minha maça, e as vozes
todas ao meu redor ordenaram na escuridão “Silêncio!”. Apoiei
minha mão no chão e toquei o pé de outro homem deitado
à minha frente. Havia outros ao meu alcance de ambos os lados. Mas
não disseram nada.
Então todos começamos a nos mover. A encosta inteira
parecia estar rastejando para baixo. Existia um rio no sopé e uma
ponte de madeira com arcos altos. Além da ponte viam-se muitas luzes
– tochas numa muralha. Os homens rastejantes dirigiam-se todos em direção
à ponte. Não houve som de espécie alguma, porém
uma quietude aveludada. Então ouviu-se um grito na escuridão,
o brado de um homem que era apunhalado no coração, subitamente.
Aquele único grito elevou-se durante um momento e depois ouviu-se
o rugir de mil vozes furiosas. Eu estava correndo. Todos corriam. Uma luz
vermelha brilhou e o rio tornou-se uma faixa rubra. Podia ver meus companheiros
agora. Eram mais demônios do que homens, figuras ferozes vestidas
de peles, com o cabelo e a barba caindo em torrentes. Estavam todos furiosos
de raiva, saltando enquanto corriam, as bocas abertas, os braços
em agitação, a luz vermelha batendo em seus rostos. Corri
também, e gritei maldições como os demais. Então
ouvi um grande estralejar de madeira que soube que as paliçadas
tinham caído. Percebi um silvo alto em meus ouvidos e eu me achava
consciente de que as flechas voavam ao meu redor. Caí no fundo de
um valo e vi uma mão estendida de cima. Segurei-a e fui puxado.
Olhamos para baixo e vimos homens prateados segurando suas lanças
para o alto. Alguns dos nossos saltaram sobre as pontas. Nós os
seguimos e matamos os soldados antes que pudessem desenterrar as lanças
dos corpos novamente. Eles gritavam alto em uma língua estrangeira,
mas não tivemos misericórdia. Caminhamos sobre eles como
uma onda, e os espezinhamos para baixo da lama, pois eram poucos e o número
dos nossos infindável.
Encontrei-me entre edifícios e um destes estava incendiado.
Vi as chamas ressaindo através do telhado. Corri e achei-me só
entre os edifícios. Alguém cruzou correndo à minha
frente. Era uma mulher. Segurei-a pelo braço e segurando-lhe o queixo,
voltei seu rosto a fim de que a luz do fogo o iluminasse. Quem você
pensa que era, Maggie?
A esposa umedeceu os lábios secos.
- Era eu, disse ela.
Ele olhou para ela, surpreso.
- É certo seu palpite, disse. Sim, era exatamente você.
Não simplesmente parecida, você compreende. Era você,
você própria. Eu vi a mesma alma nos seus olhos amedrontados.
Você parecia branca e formosa, maravilhosa à luz do fogo.
Eu tinha somente um pensamento na cabeça – levá-la para longe
comigo; conservá-la toda para mim no meu lar em algum lugar nas
colinas. Você arranhou meu rosto. Levantei-a sobre o ombro e procurei
achar um caminho para fora da luz do edifício em chamas e de retorno
à escuridão.
- Então aconteceu a coisa que relembro mais que tudo. Você
está doente, Maggie. Devo parar? Meu Deus! você tem no rosto
o mesmo olhar que possuía a noite passada no meu sonho. Você
gritou. Ele veio correndo à luz do fogo. Sua cabeça estava
desprotegida; seu cabelo era negro e encaracolado; e ele tinha uma espada
nua na mão, curta e larga, pouco maior que uma adaga. Ele lançou-se
contra mim, mas tropeçou e caiu. Segurei-a com uma das mãos,
e com a outra...
Maggie havia saltado, ficando de pé, com feições
contraídas.
- Marcus! Gritou ela. Meu belo Marcus! Oh, seu animal! Fera! bruto!
Houve um estardalhaço de xícaras de chá, quando ela
caiu para a frente, sobre a mesa, inconsciente.
Nunca falam daquele incidente isolado e estranho em sua vida de casados.
Por um instante, a cortina do passado tinha sido afastada, e algum estranho
lampejo de uma vida esquecida tinha sido mostrado a eles. Mas o véu
caiu, para nunca mais levantar-se. Vivem em seu círculo estreito
– ele na sua loja, ela no lar – e não obstante horizontes mais novos
e amplos formaram-se vagamente em torno deles, desde aquela tarde de verão
no fragmentado Forte Romano.