Eu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé.
O rapé, dizem os tomistas, que alivia o cérebro. A
briga de galos é o Jóquei-Clube dos pobrees. O que eu não
compreendo é o gosto de dar notícias.
E todavia quantas peessoas não conhecerá o leitor com
essa singular vocacao? O noveleiro não é o tipo muito vulgar,
mas também não é muito raro. Há família
numerosa deles. Alguns são mais peritos e originais que outros.
Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige
certas qualidades de bom cunho, quero dizer as mesmas que se exigem do
homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma
notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos:
deve esperar a ocasião e adaptar-se os meios.
Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É
coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto;
mas que tire satisfacao disso, lá me custa a entender. Mais de uma
vez tenho querido fazer indagacoes a esse reespeito; mas a certeza de que
nenhum noveleiro confessa que o é, tem impedido a realizacao deste
meu deesejo. Não é só desejo, é também
necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito
humano.
O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se
depressa porque não é grande.
Há coisa de sete anos, vivia nesta boa cidade um homem de seus
trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente
polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.
Era um modelo do gênero.
Sabia como ninguém, escolher o auditório, a ocasião
e a maneira de dar a noticia.
Não sacava a notícia da algibeira como quem tira uma
moeda de vintém para dar B um mendigo.
Não, senhor.
Atendia mais que tudo as circunstâncias. Por exemplo: ouvira
dizer, ou sabia positivamente que o Ministério pedira demissão
ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios.
Luís da Costa, ou dizia coisa simplesmente, ou adicionava-lhe
certo molho para torná-la mais picante.
As vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes, e, se entre elas
alguma havia metida em política, aproveitava o silencio causado
pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:
- Então, parece que os homens...
Os circunstantes perguntavam logo:
- Que é? Que há?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
- É o Ministério que pediu a demissão.
- Ah! sim? quando?
-Hoje.
-Sabe quem foi chamado?
- Foi chamado o Zózimo.
Mas por que caiu o Ministério?
- Ora, estava podre.
Etc., etc.
Ou então:
- Morreram como vieram.
- Quem? Quem? Quem?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente: todos,
e em vez de dizer com simplicidade.
- Os ministros.
Suponhamos agora que se tratava de uma pessoa qualificada que devia
vir no paquete: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck.
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
—Veio no paquete de hoje o príncipe Bismarck.
Ou então;
—o Thiers chegou no paquete.
- Chegaria o paquete?
—Chegou, dizia o circunstante.
—o Thiers veio?
—Veio.
Aqui entrava a admiração dos ouvintes com que se deliciava
Luís da Costa, razão principal do seu oficio.
Não se pode negar que este prazer era inocente e quando muito
singular.
Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer
sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? perguntava o
poeta da "Jovem Cativa", eu creio que nenhum nem sequer o de alvissareiro.
Luís da Costa experimentou um dia as asperezas do seu oficio.
Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja do Paulo Brito,
cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado como
homem que vem pejado de alguma notícia.
Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas
recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido
instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar
o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos
e soltou secamente essas palavras:
- Então fugiu a sobrinha do Gouveia? Disse ele rindo.
- Que Gouveia?
- O major Gouveia, explicou Luís da Costa.
Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o
quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís Costa.
Voltaram-se para um dos circunstantes:
- O major Gouveia da Cidade Nova? Perguntou o desconhecido ao noveleiro.
- Sim, senhor.
Novo e mais profundo silêncio.
Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da
bomba que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga da
moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposicao
do major ao casamento, do desespero dos pobres enamorados, cujo coracao,
mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos
moinhos.
O silêncio era sepulcral.
O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís daCosta,
meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão.
Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:
- E quando foi esse rapto?
- Hoje de manhã.
- Oh!
- Das oito para as nove horas.
- Conhece o major Gouveia?
- De nome.
- Que idéia forma dele?
- Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias.
A primeira é que a rapariga é muito bonita. . .
-Conhece-a?
Ainda ontem a vi.
— Ah! A segunda circunstancia ...
- A segunda circunstância e a crueldade de certos homens em tolher
os movimentos do coração da mocidade. o alferes de que se
trata dizem-me que c um moço honesto, e o casamento seria, creio
eu, excelente. Por que razão queria o major impedí-lo?
- O major tinha razões fortes, observou o desconhecido,
—Ah! conhece-o?
- Sou eu.
Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia
da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras
pessoas olhavam para os dois sem saber o que ia sair dali. Deste modo correram
cinco minutos.
No fim de cinco minutos, o major Gouveia continuou:
- Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela.
Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa; visto que ha
quinze dias se acha em Juiz de Fora.
Luís da Costa ficou amarelo.
- Por essa razão ouvi tranqüilamente a história
que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. o fato,
se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além
do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a
viu ontem.. .
Luís da Costa tornou-se verde.
—A noticia entretanto, pode ter-se espalhado, continuou o major Gouveia,
e eu desejo liqüidar o negócio pedindo-lhe que me diga de quem
a ouviu ..
Luís da Costa ostentou todas as cores do arco-íris.
—Então? disse o major, passados alguns minutos de silêncio.
—Sr. major, disse com voz trêmula Luís da Costa, eu não
podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela.
Evidentemente alguém ma contou.
- É justamente o que eu desejo saber.
—Não me lembro...
—Veja se se lembra, disse o major com doçura.
Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas
ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa
que lhe contara a história do rapto.
As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que
as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o major,
que não era homem de graças, insistiu com o alvissareiro
para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.
—Ah! agora me lembro, disse de repente Luís da Costa, foi o
Pires.
—Que Pires?
—Um Pires que eu conheço muito superficialmente.
—Bem, vamos ter com o Pires.
—Mas, Sr. major..
O major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e
com um ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que
Luís da Costa se levantasse também. o alvissareiro não
teve remédio senão imitar o gesto do major, não sem
tentar ainda um:
—Mas, Sr. major...
—Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é
necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora
esse tal Pires?
—Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.
—Vamos ao escritório.
Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao lado do major Gouveia,
a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. o major
recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na direção
da Rua dos Pescadores
O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinho à casa dele.
Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o
mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira,
em São Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.
o major ouviu esta notícia com a resignação filosófica
de quem estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu
mais à banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:
—Vamos a São Domingos.
—Vamos a São Domingos, suspirou Luís da Costa.
A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou noveleiro.
Na casa do Dr. Oliveira passaram pelo dissabor de bater cinco vezes,
antes que viessem abrir.
Enfim vieram.
—Está cá, o Sr. Pires?
Os dois respiraram.
O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse
o famoso Pires, "l'introuvable"
Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés,
apertou a mão de Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente
ao major Gouveia.
—Queiram sentar-se.
—Perdão, disse o major, não é preciso que nos
sentemos; desejamos pouca coisa.
O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou.
O major voltou-se então para Luís da Costa e disse:
- Fale.
Luís da Costa fez das tripas coração e exprimiu-se
nestes termos:
—Estando eu hoje na loja de Paulo Brito contei a história do
rapto de uma sobrinha do Sr. major Gouveia, que o senhor me referiu pouco
antes do meio-dia. O major Gouveia é esse cavalheiro que me acompanha,
e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar
em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à
fonte da notícia e perguntou-me quem me havia contado a história;
não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu então procurá-lo,
e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim,
encontramo-lo.
Durante o discurso, o rosto do Senhor Pires apresentou todas as modificações
de espanto e de medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria
ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário
responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do
uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não
sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.
—Espero as suas ordens, disse o major, vendo que o homem não
falava.
—Mas que quer o senhor?—balbuciou o Sr. Pires.
—Que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor.
Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?
—Vê? disse o major voltando-se para Luís da Costa.
Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto.
O major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:
—Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a notícia?
—Foi de um empregado do tesouro.
- Onde mora?
—Em Catumbi.
O major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já
contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam
a examinar detidamente os botões do punho da camisa.
—Pode retirar-se, disse o major; apertou a mão do Sr. Pires,
balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava trinta passos,
e ainda lhe parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente
a sair uma barca; Luís da Costa deia correr, e ainda a alcançou,
perdendo apenas o chapéu, o herdeiro foi um cocheiro necessitado.
Estava livre.
—Que mandam nesta sua casa? perguntou o capitão
—Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você
me contou a respeito da sobrinha do Sr. major Gouveia.
—Não me lembro; que foi? disse o capitão com uMa cara
tão alegre como a de um homem a que estivesse torcendo um pé.
—Disse-me você, continuou o bacharel Plácido, que o namoro
da sobrinha do Sr. major Gouveia era tão sabido que até já
se falava de um projeto de rapto...
—Perdão! interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma
coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.
- Não foi?
—Não.
—Então que foi?
—O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha
de V. Sa. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte
do meu amigo Plácido.
—Sim, há alguma diferença, concordou o bacharel.
—Há, disse o maior deitando-lhe os olhos por cima do ombro.
Seguiu-se um silêncio.
—Enfim senhores, disse ele, ando desde as duas horas da tarde na indagação
da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A
notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí
um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. capitão dizer-me a
quem ouviu isso?
—Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao desembargador
- É meu amigo!
—Tanto melhor.
- Acho impossível que ele dissesse isso, disse o major levantando-se.
- Senhor! Exclamou o capitão.
- Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em si. Há
de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltrado por culta de um
amigo...
—Nem ele disse por mal, observou o capitão Soares. Parecia até
lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra
pessoa.
— É verdade, concordou o major. O desembargador não era
capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.
—E provável.
- Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato, acompanha-me
à casa dele.
—Agora?
- É indispensável.
- Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?
- Sei; iremos de carro.
O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se
dos dois militares.
—Não podíamos adiar isso para depois? perguntou o capitão
logo que o bacharel saiu.
—Não, senhor.
O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império
na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível
resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão
ceder.
Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção
do Rio Comprido, onde morava o desembargador.
O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração,
mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida
de gamão.
Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à
porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, em cujo
dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco
gangas. o desembargador fumava... figuradamente falando, e o coadjutor
sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala
e queriam falar com o desembargador.
O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o
copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor
num discurso furibundo contra os importunos e maçantes.
—Há de ver que é algum procurador à procura de
autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo
a todos eles.
—Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá
ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção
corrijo a sorte dos dados.
—Tem razão, é possível, concordou o desembargador,
levantando-se e dirigindo-se para a sala.
Na sala teve a surpresa de achar dois conhecidos.
O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpas do incômodo
que lhe vinha dar. o major levantou-se também mas não sorria.
Feitos os cumprimentos, foi exposta a questão. o capitão
Soares apelou para a memória do desembargador a quem dizia ter ouvido
a notícia do namoro da sobrinha do major Gouveia.
—Recordo-me ter-lhe dito, respondeu o desembargador, que a sobrinha
do meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo
d'alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que
havia namoro...
O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que
o boato ia a diminuir à proporção que se aproximava
da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.
—Muito bem, disse ele; a mim não basta esse dito; desejo saber
a quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.
—A quem o ouvi?
—Sim.
—Foi ao senhor.
- A mim!
—Sim, senhor; sábado passado.
—Não é possível.
—Não se lembra que me disse na Rua do Ouvidor, quando falávamos
das proezas da...
—Ah! mas não foi isso! exclamou o major. o que eu lhe disse
foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se
ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.
—Nada mais? perguntou o capitão.
—Nada mais.
- Realmente, é curioso.
O major despediu-se do desembargador, levou o capitão até
Mataporcos e foi direto para casa, praguejando contra si e todo o mundo.
Ao entrar em casa já estava mais aplacado. O que o consolou
foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora.
Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada
que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:
- Quem conta um conto..