Ricardo Minútolo, amando-a e fazendo todas as coisas com que
se podem obter as graças e o amor de uma mulher, e não chegando
em nada a realizar os seus desejos, quase se desesperava. Não podendo
ou não sabendo libertar-se do amor, tampouco morria, nem lhe aprazia
o viver. E em tal estado aconteceu que, aconselhado por alguns parentes
seus quis desistir de tal amor, posto que em vão se fadigava, já
que Catela encontrava a sua felicidade apenas em Felipe de quem com tal
ciúme vivia, que temia que até as aves que passavam pelo
ar, quisessem tomar-lho.
Sabedor dos ciúmes de Catela, Ricardo, subitamente, tomou uma
resolução, começando a aparentar que do amor de Catela
desesperava e por isso colocava a sua ambição em outra mulher
novre e por amor desta fazia em justas e torneios todas aquelas façanhas
que soía fazer por Catela.
Não passou muito tempo que todos os napolitanos, Catela inclusive, se convenceram de que ele amava grandemente essa segunda dama, e tanto nisso perseverou que todos se convenceram de que a verdade era essa, e a própria Catela renunciou à esquivança com que o tratava, quando o sabia enamorado, passando a usar da intimidade que como vizinho lhe devia, saudando-o. Como fazia com os outros.
Ora, aconteceu que, sendo o dia de calor, muitas comitivas de homens
e mulheres, de acordo com os costumes napolitanos, se transladaram para
as praias e Ricardo, sabendo que Catela também havia ido com os
seus, tomou parte em uma comitiva, tendo sido recebido no grupo de Catela
não sem antes muito fazer-se de rogado.
Então Catela e as mulheres puseram-se a motejar de seu novo
amor, do qual ele, mostrando-se muito aceso, dava ainda mais motivos para
comentários.
Enquanto isso, umas iam para uma direção, outras para
outra, como acontece por aquelas paragens, restando Catela com poucas outras
onde estava Ricardo; esse fez logo alusão a certo amor de Filipe,
seu marido, o que a fez acender-se de súbito ciúme e começou
a arder, toda desejo de saber o que Ricardo queria dizer. Depois de se
ter dominado por algum tempo, e não podendo mais fazê-lo,
pediu a Ricardo que, pelo amor da mulher que mais amava, a esclarecesse
sobre o que dissera de Filipe. E Ricardo falou:
- Vós me conjurastes por pessoa tal que eu não poderia
atrever-me a negar o que pedis, e por isso estou pronto a dizer-vos, desde
que me prometais que não direis palavra do que eu disser depois
de verificardes a verdade do que afirmo. E quando quiserdes, eu vos ensinarei
como podereis verificá-la.
A mulher ficou satisfeira com o que ele pedia e acreditou ainda mais
que ele dizia a verdade, jurando-lhe que a ninguém o revelaria.
Retirados para um lado em que ninguém os ouviria, Ricardo disse:
- Senhora, se eu vos amasse como já vos amei, não
me atreveria a dizer coisa que acreditasse poder aborrecer-vos. Mas como
aquele amor é passado, preocupa-me menos o descobrir-vos toda a
verdade. Não sei de Filipe alguma vez se ultrajou com o amor que
eu vos dediquei ou se abrigou a crença de que eu fosse por vós
amado. Mas seja lá como for, nem uma nem outra coisa ele jamais
deixou transparecer. Agora, esperando talvez uma ocasião, pois acredita
que eu esteja menos desconfiado, dá mostras de querer fazer a mim
o que eu duvido que ele não tema que eu lhe faça: ele quer,
em suma, conquistar minha mulher. E pelo que eu tenho entendido, ele de
pouco tempo para cá, secretissimamente a tem solicitado, em repetidas
embaixadas, de todas as quais por ela mesma fui inteirado, e a quem ela
deu a resposta que eu impus. Esta manhã, porém, antes de
eu vir aqui, encontrei em minha casa uma mulher desassisada que vi logo
muito bem quem era. Chamei a minha esposa e perguntei-lhe o que pedia aquela
mulher, ao que ela redargüiu:
- É a instigação de Filipe que a faz vir aqui
em busca de respostas e esperanças e diz que a todo custo quer saber
o que eu pretendo fazer e que ela, quando eu quiser, fará que eu
vá secretamente a um banho com ele e para que eu consinta assaz
me pede e importuna. E se não fosses tu que me meteste nesses enredos,
não sei por que, eu me teria livrado dele de tal maneira que nunca
mais se atreveria a pôr os olhos onde eu estivesse.
- Então, pareceu-me que Filipe avançava muito e que
não era possível tolerar mais e resolvi dizer-vos, para que
reconheçais a recompensa que a vossa completa fidelidade recebe,
e pela qual eu já estive na iminência de ser levado ao sepulcro.
E para que não penseis que o que digo são apenas palavras
e fábulas, se não verdades de que, quando quiserdes, podereis
certificar-vos, disse a minha esposa que à mulher que a esperava
respondesse que estava disposta a aparecer amanhã às três
da tarde, ao banho. Com isso, a criatura partiu contentíssima.
Não presumo agora que acrediteis que eu a enviasse. Mas se
eu estivesse em vosso lugar, faria que ele se encontrasse comigo em lugar
de encontrar-se com quem ele quer e, depois de curta permanência
com ele, eu lhe faria ver com quem havia estado, tratando-o então
como merece. E assim agindo, de tal sorte ele se envergonharia que ficará
a um tempo vingada a ofensa que quis infligir a mim e a vós.
Catela, sem atender a quem lhe falava nem aos seus enganos, como soem fazer os ciumentos, subitamente deu fé as palavras e passou a ligar com este fato algumas coisas que haviam acontecido antes. E de súbita ira acesa, respondeu que ela assim certamente agiria e que, se ele aparecesse, ela o envergonharia de tal sorte que sempre que ele visse alguma mulher, o episódio lhe voltaria à imaginação.
Ricardo, contente com o que via e parecendo-lhe que a idéia havia sido boa e procedente, confirmou a sua perfídia com muitas outras palavras, fazendo-a acreditar mais, rogando-lhe todavia, que não dissesse a ninguém o que ele lhe havia falado, o que ela prometeu sob palavra.
Na manhã seguinte, Ricardo foi ao encontro da boa mulher que era a dona da casa de banhos, disse-lhe o que pretendia fazer e pediu-lhe que o favorecesse. A boa criatura, que o apreciava muito, disse que o faria de bom grado, combinando com ele o que teria de fazer ou dizer.
Na casa de banhos havia um quarto muito escuro, dada a falta de qualquer
janela. A conselho de Ricardo, a mulher, pôs ali uma cama em que
ele se meteu à espera de Catela.
Dando às palavras de Ricardo mais fé do que mereciam,
à tarde, Catela voltou aborrecida para casa, onde Filipe também
voltava cheio de outros pensamentos, tendo tratado a esposa com menos familiaridade
do que de costume, o que contribuiu para aumentar a sua desconfiança.
Dizia consigo mesma: na verdade ele está pensando na mulher com
quem pretende encontrar-se amanhã, o que com toda a certeza não
irá acontecer. E passou a noite dominada por este pensamento e imaginando
o que lhe deveria dizer na hora azada.
Chegada a hora, Catela, acompanhada de uma criada, dirigiu-se para a
casa de banhos. E ali, encontrando a boa mulher, perguntou-lhe se Filipe
havia aparecido, ao que a proprietária, industriada por Ricardo,
respondeu:
- Sois a mulher que deverá encontrar-se com ele?
- Sim, respondeu Catela.
- Podeis entrar, redargüiu, pois ele está lá
dentro.
Catela, que andava procurando o que não queria encontrar, dirigiu-se
ao quarto. Entrou com a cabeça coberta, e fechou a porta. Ricardo,
à sua chegada, levantou-se feliz e acolhendo-a nos braços,
disse, calmamente: - “Vem, alma minha.”
Catela, querendo mostrar ser outra que não ela mesma, abraçou-o
e beijou-o, acariciando – e sem dizer palavra, temendo, se falasse ser
por ele reconhecida. O quarto era escuríssiimo, o que foi de agrado
de ambos. Nem mesmo a grande permanência ali dentro deu aos seus
olhos o poder de verem claro.
Ricardo conduziu-a para o leito e aí, sem falar, de modo que a voz não o pudesse trair, por grandíssimo espaço de tempo ficaram, e com grande alegria de ambos. Mas quando a Catela pareceu que era chegada a ocasião de desabafar-se, acesa de fervente ira, disse:
- Ah, quanto é mísera a sorte das mulheres e como é mal empregado o amor de muitas para com os maridos! Desgraçada de mim, há oito anos que eu te amo mais do que a minha vida e tu ardes e te consomes no amor de mulher estranha. Criminoso e perverso, com quem acreditas que estejas? Estás com aquele que, com falsas lisonjas, enganaste e por muitas vezes, fingindo-lhe amor quando estavas enamorado de outra. Eu sou Catela, não sou a mulher de Ricardo, traidor desleal. Escuta, para ver se reconhece a minha voz. Parece que mil anos que vivêssemos eu não te envergonharia como mereces, cachorro sujo e vituperável. Desgraçada de mim! A quem eu, por tantos anos, dediquei tanto amor? A este cão desleal que, acreditando ter nos braços mulher estranha, me fez mais carícias nas poucas horas que aqui me teve do que em todas as outras em que me possuiu. Estivesse hoje, cão renegado, bastante animoso enquanto em casa sóis mostrar-te débil, rendido e impotente. Mas Deus louvado, lavraste o teu campo e não campo alheio como acreditavas. Não é de estranhar que esta noite passada não me houvesses procurado. Esperavas em outro lugar aliviar a tua carga e querias chegar, cavaleiro fresco à batalha. Mas louvado seja Deus assim como a minha precaução seja louvada, a água desceu para o mar como devia. E não me respondes, criminoso? Nada me dizes? Emudeceste só de ouvir-me? Palavra que não sei o que me impede de meter as mãos nos teus olhos, arrancando-os! Acreditaste fazer ocultamente esta traição? Por Deus, vês bem que tanto sabe um como o outro. Não o conseguiste. Saí-me melhor do que supunhas.
Ricardo gozava consigo mesmo aquelas palavras e sem responder nada, abraçava-a e beijava-a, e mais do que nunca fazia-lhe grandes carícias. E ela continuava dizendo:
- Pensas agora que as tuas carícias infinitas possam agradar-me e consolar-me, cão fastioso. Mas erras. Não me darei por consolada, enquanto eu não te vituperar em presença de quantos parentes e amigos e vizinhos tenhamos. Ora, não sou eu, perverso, tão bela como a mulher de Ricardo Minútolo? Não sou tão gentil dama como ela? Por que não me respondes, cão imundo? Que tem ela mais do que eu? Aparta-te, não me toques que já fizeste o suficiente por hoje. Sei bem que de agora em diante, já bem sabes quem sou, forcejarás por fazer até esse momento espontaneamente não fizeste. Mas se Deus me der a sua graça, eu te farei padecer de ciúme; não sei o que é que me prende que não mando chamar por Ricardo, que me amou mais do que a si mesmo e jamais pôde orgulhar-se de eu tê-lo olhado, uma vez que fosse, e não sei que mal teria havido se eu o houvesse feito. Acreditaste ter a mulher dele e é como se a tivesses possuído, pois não esteve em ti a culpa de não se tratar dela. Portanto, se ele me possuísse, não terias por que me censurar.
As palavras foram bastantes e grande a amargura da mulher. Por fim, Ricardo, pensando que se saísse, deixando-a nessa crença, muitos males poderiam sobrevir, deliberou revelar-se, tirando-a do engano em que estava. E, segurando-a bem entre os braços, de modo que não pudesse escapar, disse: “Doce amor meu, não vos perturbeis, aquilo que, simplesmente amando, não pude ter. amor, com enganos, ensinou-me a possuir. Eu sou o vosso Ricardo.”
Catela subitamente quis atirar-se do leio mas não pôde.
Quis gritar, mas Ricardo tapou-lhe a boca, dizendo:
- Senhora, é impossível que aquilo que aconteceu,
deixe de ter acontecido, embora ficásseis a vida toda gritando.
E se gritardes ou fizerdes que, de qualquer maneira, o que fizemos venha
a ser do conhecimento de qualquer pessoa, duas coisas podem acontecer:
uma (que não vos deve importar pouco) é que a vossa honra
e boa reputação serão destruídas, pois se disserdes
que eu aqui vos trouxe por engano, terei que responder que não é
verdade, antes que vos fiz vir por dinheiro e presentes prometidos e que,
por não terem sido o que esperáveis, vós vos perturbastes,
passando a fazer tão grande alarido. E vós sabeis que o povo
está mais inclinado a acreditar no mal que no bem e por isso mesmo
é que acreditará em mim, antes de acreditar em vós.
Depois disso nascerá entre vosso marido e mim uma inimizade mortal
e pode acontecer muito bem que um de nós acabe matando o outro,
tal seja a marcha dos acontecimentos, coisa que de nenhum modo vos deve
deixar contente. E, por isso, coração meu, não queirais
a um tempo, desonrar-vos e pôr em perigo e briga a vosso marido e
a mim. Não sois a primeira nem sereis a última a ser enganada,
nem vos enganei para tirar-vos a honra, mas por um imenso amor que vos
dedico e dedicarei sempre, dispondo-me a ser vosso humílimo servidor.
E como há muito que eu e minhas coisas e tudo que eu possa e valha
fiz vossos e pus a vosso serviço, acredito que de hoje em diante
ainda mais o estarão. Ora, vós sois esclarecida em outras
coisas e estou certo de que o sereis também nessa.
Catela chorava profusamente. E muito perturbada e amarga, deu razão
às palavras de Ricardo. É que ela acreditava possível
vir a acontecer o que Ricardo prognosticava. E disse:
- Ricardo, eu não sei como Deus possa conceder-me que eu
tolere a injúria e o engano que me fizestes. Não quero gritar
aqui aonde fui conduzida pela minha ingenuidade e ciúme, mas vivei
seguro de uma coisa, que eu não ficarei contente, enquanto
não me vingar do que me fizeste. Já é tempo de me
deixardes. Deixai-me, imploro. Já possuístes o que desejastes
e já muito me maltratastes.
Ricardo dispunha-se todavia a não a deixar, a não ser
depois de reaver a sua paz. Por isso, começou com dulcíssimas
palavras a apaziguá-la, tanto disse, rogou e conjurou que ela, vencida,
fez as pazes com ele e, postos enfim de acordo, permaneceram por muito
tempo em amistosa companhia. E a mulher, conhecendo então que os
beijos do amante são mais saborosos que os do marido, transformou
em doce amor a sua dureza e, daquele dia em diante, ternissimamente o amou
e, agindo, avisadissimamente, muitas vezes gozaram do seu amor. E que Deus
nos faça gozar do nosso.