m dia Azora
regressou de um passeio muito encolerizada e soltando grandes exclamações.
- Que tens tu, minha querida esposa – perguntou ele – para ficares
assim tão exaltada?
- Ai! – respondeu ela, - estarias como eu se visses o espetáculo
que acabo de testemunhar. Fui consolar a jovem viúva Cosrou que
há dois dias mandou edificar o túmulo de seu esposo à
beira do riacho que atravessa este prado. Em sua aflição
ela prometera aos deuses ficar ao pé do túmulo enquanto o
riacho por ali corresse.
- Então! Eis uma estimável senhora que amava realmente
o marido!
- Não dirias isso – continuou Azora – se soubesses em que ela
se ocupava hoje quando a visitei.
- Pois em que, minha bela Azora?
- Estava desviando o riacho.
Azora derramou-se em tão longas invectivas, explodiu em tão
violentas recriminações contra a jovem viúva, que
semelhante ostentação de virtude acabou por desgostar Zadig.
Tinha ele um amigo, chamado Cador, um desses moços a quem sua
mulher atribuía mais probidade e mérito que aos outros; confiou-se
a Cador, e assegurou-se tanto quanto possível de sua fidelidade
por meio de um valioso presente. Azora tendo passado dois dias no campo
com uma amiga,voltou para a casa no terceiro. Criados em prantos anunciaram-lhe
que o marido morrera de repente, nessa mesma noite, que ninguém
tivera coração de lhe levar a funesta notícia, e que
acabavam de sepultar Zadig no túmulo de seus pais, no fundo do jardim.
Ela chorou, arrancou os cabelos, jurou morrer. À noite, Cador mandou
pedir para lhe falar e ficaram ambos chorando. No dia seguinte já
choraram menos e jantaram juntos. Cador confessou que o amigo lhe deixara
a maior parte dos bens, e deu-lhe a entender que a sua maior felicidade
seria partilhar a fortuna com ela. A jovem chorou, zangou-se e depois sossegou;
a ceia foi mais longa que o jantar e falaram-se com mais intimidade. Azora
fez o elogio do defunto, admitindo embora ter ele certos defeitos que não
notava em Cador.
No meio da refeição, Cador queixou-se de uma violenta
dor no baço; a dama, preocupada e solícita, mandou buscar
todas as essências com que se perfumava, a fim de experimentar se
alguma seria benéfica para a dor de baço; deplorou muito
que o grande Hermes não estivesse em Babilônia, dignou-se
mesmo a apalpar o ponto onde a dor era mais viva.
- Sofres muito com essa cruel doença? – perguntou ela compassiva.
- Às vezes sinto-me a dois passos da morte – respondeu Cador,
- e só há um remédio que me traz algum alívio:
é aplicar-me no local, o nariz de um homem que tenha morrido na
véspera.
- Estranho remédio! – exclamou Azora.
- Não mais estranho que os saquinhos de ervas do senhor Arnou
contra a apoplexia.
Essa razão, aliada aos grandes méritos do jovem, decidiu
enfim a dama.
- De qualquer modo – volveu ela, - quando meu parido passar do mundo
de ontem para o de amanhã, através da ponte Tchinavar, o
anjo Asrael decerto lhe não recusará passagem só porque
o seu nariz vai ficar um pouco mais curto na segunda vida do que na primeira!
Apanhou uma navalha de barba e dirigiu-se ao túmulo do esposo,
regou-o de lágrimas e preparou-se para cortar o nariz de Zadig que
lá estava estendido na campa. Zadig ergueu-se, protegendo o nariz
com uma das mãos, ao mesmo tempo que afastava a navalha com a outra.
- Senhora – disse ele – não censure tanto a jovem Cosrou; a
intenção de me cortar o nariz vale bem a de desviar as águas
de um riacho.
O Cão e o Cavalo
Zadig convenceu-se de que o primeiro mês do casamento, como está
escrito no livro do Zenda, é a lua de mel, e que o segundo é
a lua de fel. Pouco tempo depois viu-se obrigado a repudiar Azora, que
se tornou difícil de aturar, e procurou satisfação
no estudo da natureza. “Ninguém é mais feliz – dizia ele,
- que um filósofo que lê o grande livro aberto por Deus diante
dos nossos olhos. São as suas verdades que descobre: alimenta e
educa a alma, vive tranqüilo; nada receia dos homens, e sua meiga
esposa não vem lhe cortar o nariz”.
Cheio destas idéias recolheu a uma casa de campo à beira
do Eufrates, onde não se ocupava a calcular quantas polegadas de
água correm por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se no mês
do rato cai uma linha cúbica de chuva a mais que no mês do
carneiro. Não cuidava de fazer seda com teias de aranha, nem porcelana
com cacos de vidro, antes estudou sobretudo as propriedades dos animais
e das plantas, não tardando a adquirir uma sagacidade que lhe apontava
mil diferenças onde os outros homens viam só uniformidade.
Certo dia, passeando na orla de um bosque, viu aproximar-se um eunuco
da rainha seguido de vários oficiais que pareciam tomados da maior
inquietação, e corriam de um lado para outro como pessoas
extraviadas em busca da maior preciosidade perdida.
- Moço – perguntou o eunuco, - por acaso não viu o cachorro
da rainha?
Zadig respondeu modestamente:
- Creio tratar-se de uma cadela e não de um cachorro.
- Tem razão, volveu o eunuco.
- É uma cachorrinha de caça que deu cria há pouco
tempo. Manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.
- Viu-a então? – tornou o eunuco, esbaforido.
- Não – respondeu Zadig, - nunca a vi e nem mesmo sabia que
a rainha tivesse uma cadela.
Justamente nessa ocasião, por um capricho muito comum da sorte,
o mais belo cavalo das coudelarias do rei fugira das mãos de um
palafreneiro para as campinas da Babilônia. O monteiro-mor e todos
os outros oficiais andavam atras dele com tanta apreensão quanta
a do eunuco atras da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe
se não vira passar o cavalo do rei.
- É o cavalo que melhor galopa – respondeu Zadig; - tem cinco
pés de altura e os cascos muito pequenos; sua cauda mede três
pés de comprimento e as rodelas do seu freio são de ouro
de vinte e três quilates; usa ferraduras de prata de onze denários.
- Que caminho tomou ele? Onde está? – perguntou o monteiro mor.
- Não sei – respondeu Zadig; - não o vi nem nunca ouvi
falar nele.
O monteiro-mor e o eunuco ficaram certos de que Zadig tinha roubado
o cavalo e a cadela, e levaram-no à presença do grande Desterham,
que o condenou ao knut, e a passar o resto dos seus dias na Sibéria.
Mal havia terminado o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela.
Os juízes viram-se na desagradável contingência de
reformar a sentença, mas condenaram Zadig a pagar quatrocentas onças
de ouro por dizer que não vira o que tinha visto. Primeiro ele teve
que pagar a multa, e só depois lhe permitiram defender a sua causa,
onde falou nestes termos:
Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o brilho do diamante e muita afinidade com o ouro: já que me é consentido falar diante desta augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que nunca vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Aqui está o que me sucedeu: andava eu passeando pelo pequeno bosque onde depois encontrei o venerável eunuco e o muito ilustre monteiro-mor. Percebi na areia pegadas de animal e facilmente concluí serem as de um cão. Leves e longos sulcos, visíveis nas ondulações da areia entre os vestígios das patas, revelaram-me tratar-se de uma cela com as tetas pendentes, e que, portanto, deveria ter dado cria poucos dias antes. Outros traços em sentido diferente, sempre marcando a superfície da areia ao lado das patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grandes; e como além disso notei que as impressões de uma das patas eram menos fundas que as das outras três, deduzi que a cadela da nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim me posso exprimir.
“Quanto ao cavalo do rei, sabei que estando eu a passear pelos carreiros
desse bosque, avistei as marcas das ferraduras de um cavalo, todas colocadas
a igual distância. “Eis aqui – disse comigo – um cavalo que
tem o galope perfeito”. A poeira das árvores, num caminho de não
mais de sete pés de largura, mostrava-se um pouco revolvida à
direita e à esquerda, a três pés e meio do centro
da rota. “Este cavalo – tornei a considerar – tem a cauda de três
pés e meio, a qual nos seus movimentos para a direita e para a esquerda,
varre esta poeira”. Vi depois sob as árvores, que formavam um docel
de cinco pés de altura, alguns ramos cujas folhas tinham caído
recentemente, e concluí que o animal que as roçara com a
cabeça, tendo, portanto, cinco pés de altura. Seu freio deve
ser de ouro de vinte e três quilates, pois tendo batido numa pedra
que verifiquei ser uma pedra de toque, pude em seguida identificá-lo.
Enfim, pelas marcas das ferraduras deixadas em pedras de outra espécie,
deduzi que estava ferrado com prata fina.
Todos os juízes admiraram o profundo e sutil discernimento de
Zadig; a notícia chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só
se ouvia falar de Zadig nas antecâmaras, nas salas e gabinetes; e
embora alguns magos opinassem que ele devia ser queimado como feiticeiro,
o rei ordenou que lhe devolvessem a multa de quatrocentas onças
de ouro a que havia sido condenado. O escrivão, os oficiais de justiça
e os procuradores foram a sua casa em grande aparato levar-lhe as quatrocentas
onças, das quais apenas retiveram trezentas e noventa e oito para
as custas do processo, além dos honorários reclamados pelos
servidores.
Zadig compreendeu que às vezes era perigoso ser demasiadamente
sábio, e prometeu a si mesmo não tornar a dizer o que porventura
houvesse visto.
A ocasião não tardou a apresentar-se. Um prisioneiro
de Estado tendo fugido, passou por baixo das janelas de sua casa. Zadig
interrogado nada respondeu, mas provaram-lhe que ele havia olhado pela
janela. Por esse crime foi condenado a pagar quinhentas onças de
ouro, e ainda agradeceu a benevolência dos juízes, como é
costume em Babilônia. “Santo Deus! – exclamou ele para si, - quanto
é lastimável ir-se passear a um bosque onde passaram a cadela
da rainha e o cavalo do rei! Como é perigoso a gente chegar à
janela, e como é difícil ser feliz neste mundo!”