PRIMEIRO
É impossível não encontrar quadros por toda a
parte, pois o simples fato de meu pai haver sido ferreiro, por exemplo,
e o vosso, Par do Reino, leva-nos uns para com os outros, a assumir o aspecto
de personagens de quadro, o que possivelmente não poderíamos
evitar se saíssemos da moldura que as circunstâncias criaram
para nós, por mais que procuremos expressar-nos com toda naturalidade.
Ao lembrarem-se de mim, certamente me imaginarão à porta
da forja, com uma ferradura na mão, e hão de comentar: “Que
coisa mais pitoresca!”. De minha parte, não posso evitar as fantasias
que me assaltam de ver-nos comodamente reclinados num luxuoso carro, cumprimentando
o povo, e tal visão a meus olhos, é o símbolo da Inglaterra
aristocrata. Certamente, nem uma, nem outra destas duas imagens corresponderá
à realidade, mas, que posso fazer?
Ora, acontece que, há pouco, numa curva da estrada, divisei
um desses quadros que poderia intitular-se “O regresso do marinheiro”,
ou coisa parecida. Tratava-se de um marinheiro jovem, simpático,
transportando um saco na mão e de uma moça agarrada ao seu
braço; em volta dele, alguns vizinhos e, ao fundo, uma pequena casa
rodeada de um jardim florido.
Ao passar, via-se que aquele marinheiro acabava de chegar da China
e que, no interior da casa, a sala fora cuidadosamente preparada para recebê-lo.
Adivinhava-se também que, no saco que ele transportava, trazia um
presente para a jovem esposa, e que esta ia dar-lhe o primeiro filho. Tudo
estava certo, tudo parecia perfeito nesse quadro, e contemplar tamanha
felicidade tornava a vida mais suave e agradável de viver.
Pensando assim, segui adiante, completando o quadro, de memória,
o mais que pude, com pormenores que conseguia observar, a cor do vestido
dela, a expressão dos olhos deles, o gato amarelo enroscado à
porta da casa.
Durante certo tempo o quadro fixou-me nos olhos, tornando tudo em volta
mais brilhante, mais quente e mais simples do que é habitual, e
fazendo com que certas coisas se me apresentassem como loucuras, outras
como tolices e outras ainda exatas, perfeitas, e com muito mais sentido
do que sempre imaginara. Naquele dia e no dia seguinte, nos momentos mais
singulares, o quadro voltou-me à memória, pensando com inveja,
mas também com ternura, no marinheiro e na esposa, perguntava-me
o que estariam fazendo e dizendo, naquele instante.
A minha imaginação, aos poucos, foi acrescentando ao
primeiro, outros quadros que, por assim dizer, o completavam. Via o marinheiro
rachando lenha, tirando água do poço do jardim; ouvia-o conversar
com a esposa sobre o que vira na China, imaginava ela colocando cuidadosamente
o presente que o marido trouxera sobre a lareira da sala, depois imaginava
a moça costurando roupinhas de crianças enquanto todas as
portas e janelas se encontravam abertas para o jardim, onde pássaros
cantavam e abelhas zumbiam. Rogers – era o nome dele – não encontrava
palavras para expressar o prazer que tudo lhe causava, depois de ter percorrido
os mares da China, e detinha-se a fumar cachimbo, fora da porta, admirando
o jardim.
SEGUNDO
No meio da noite, um grito dilacerante rompeu o silêncio; depois,
ouviu-se como que um vozear, a seguir um silêncio de morte dominou
tudo. O que pude divisar, da minha janela, foi uma haste do lilás
do jardim, pendendo imóvel sobre a estrada. Era ainda noite escura.
Não havia luar. O grito emprestara às coisas um aspecto singular.
Quem gritara? Por que gritara ela? Tratava-se de uma voz de mulher, quase
inexpressiva, quase assexuada, pela violência da emoção.
Dir-se-ia a natureza humana gritando contra qualquer inexplicável
iniquidade, contra qualquer indescritível horror. Seguiu-se ao grito
um silêncio de morte. As estrelas cintilavam nítidas, serenas,
os campos dormiam tranqüilos e as árvores continuavam imóveis;
no entanto, por toda a parte se espalhara um sentimento de culpa, todas
as coisas se sentiam responsáveis por não sei que tremendo
crime. Tinha-se a sensação de que era imprescindível
tentar qualquer coisa. Devia, forçosamente, aparecer alguma luz
agitando-se, movendo-se, inquieta, numa e noutra direção.
Alguém devia aparecer correndo pela estrada. As janelas da casinha
curva do caminho iluminar-se-iam e então talvez um outro grito se
fizesse ouvir menos desesperado, no entanto, já não inarticulado
e repleto de tão indescritível horror.
Contudo, nenhuma luz apareceu, nenhum rumor de passo se ouviu, e não
houve segundo grito. O primeiro extinguira-se, desapareceram dele os derradeiros
ecos, e seguiu-se-lhe um silêncio mortal.
Deitada no escuro do quarto, inutilmente eu escutava. Fora uma voz
apenas. Uma voz sem sentido. Não era possível imaginar qualquer
quadro que com esse grito tivesse relação e que pudesse ajudar
a interpretá-la ou a torná-lo inteligível. A manhã
começava a romper quando avistei uma forma humana, meio diluída
em treva, indefinida, informe, erguendo em vão um braço gigantesco
contra qualquer intransponível iniquidade.
TERCEIRO
O tempo permanecia suave. Se não tivesse ouvido aquele grito
durante a noite, teria a impressão de que, finalmente, o mundo aportara
a porto seguro, que vida deixara de ser agitada pelo vendaval, que o mundo
alcançara, enfim, uma enseada tranqüila, onde repousaria quase
imóvel. Entretanto, nos meus ouvidos, o som persistia. Onde quer
que me dirigisse e, mesmo ao dar um passeio pelas colinas, qualquer coisa
me parecia existir sob a superfície serena das coisas, fazendo-me
descrer da estabilidade, da segurança, que à minha volta
pareciam existir. Pela vertente, um rebanho pastava tranqüilo e o
vale, ao fundo, estendia-se, ondulado como um mar calmo de verão.
Passei por uma herdade solitária. No pátio um cachorro brincava
e borboletas voltejavam sobre a urze. Tudo parecia gozar uma felicidade
serena e pura. Contudo, na noite anterior, ouvira-se aquele grito e toda
a beleza, toda a serenidade, que eu tinha ante os olhos, fora cúmplice.
Sim, pelo menos consentira, e tudo continuava sereno, belo, embora aquele
grito se tivesse feito ouvir e pudesse voltar a repetir-se. Toda a serenidade,
toda a segurança eram aparência falaz...
E então, para alegrar-me, para dominar esta opressiva disposição,
recordei a chegada do marinheiro. Tornei a ver o quadro, enriquecendo-o
ainda com mais alguns pormenores – o vestido azul que ela trazia, a sombra
que a árvore florida projetava sobre o jardim – que não notara
até ali. Tornei a avistá-los junto da porta da casa, ele
com seu saco, ela enfiando-lhe o braço, o gato amarelo enroscado
à porta. E desta maneira, rememorando o quadro em todos os seus
pormenores, pude, aos poucos, convencer-me de que realmente existiam calma
e bem-estar para além da superfície das coisas e não
nos esperava sempre qualquer surpresa traiçoeira e sinistra.
O rebanho pastando, espalhado pelo ondulado das colinas, a herdade
longínqua, guardada pelo cão, e as borboletas pousando aqui
e ali, eram realmente fatos e nada havia oculto sob tais aparências.
E assim regressei à casa, pensando no marinheiro e na mulher, desenhando,
um após outro, vários quadros de felicidade perene e de alegria,
de modo a silenciar o desassossego que o tremendo grito deixara dentro
de mim.
Alcancei finalmente a aldeia, atravessando o adro, por onde é
forçoso atravessar; e, como sempre me acontece de cada vez que passo
naquele local de paz, atentei na tranqüilidade das cinzas, repousando
dentro do túmulo de pedra, ou em covas onde não existe sequer
um nome a recordar. Quando por aqui passo, tenho sempre a impressão
de que a morte é uma coisa alegre.
Eis então que um quadro mais se me apareceu.
Um homem abrindo uma cova e um bando de crianças merendando
ao lado da sepultura. A mulher do coveiro, gorda e bonita, encostada a
um túmulo, estendera o avental na relva, mesmo ao lado da cova que
acabava de ser aberta, fazendo-o de toalha. De vez em quando, algum torrão
caía no meio do serviço de chá. “Quem vai ser enterrado”,
perguntei, “morreu finalmente o velho Mr. Dodson?” “Não, não,
respondeu-me a mulher. “É para Rogers, o marinheiro. Morreu a noite
passada de uma febre que apanhou na viagem. Não ouviu a mulher?
Veio à estrada e gritou...” Depois, virando-se para um dos pequenos,
“tem juízo, Tommy, estás te sujando de terra!”
Que quadro tremendo que não me atrevo sequer a esboçar...