Mas, continuou Sherazade, isso tudo não foi mais espantoso do
que a História do pescador.
Então o Rei disse a Sherazade: “Que história do pescador?”
HISTÓRIA DO PESCADOR E DO IFRIT
Sherazade disse:
Contaram-me, ó poderoso rei, que havia um pescador, de idade
muito avançada, casado, pai de três filhos e muito pobre.
Tinha o costume de tirar a rede quatro vezes por dia, e não
mais. Ora, um dia, no início da tarde, ele foi para a beira do mar,
descansou seu balaio, atirou a rede e ficou esperando até que ela
pousasse no fundo da água. Então recolheu os filhos e viu
que a rede pesava muito e não conseguia puxá-la. Levou, então,
a ponta do fio à terra e amarrou-a a uma estaca enfiada na areia.
Depois despiu-se e mergulhou na água que ficava em volta da rede
e não cessou de debater-se até soltá-la. Alegrou-se,
tornou a se vestir e, aproximando-se da rede, encontrou um burro morto.
Vendo aquilo, desolou-se e disse: “Não há força e
poder senão em Alá, o todo poderoso.” Depois, disse: “Mas,
em verdade, este dom de Alá é espantoso!”
Retirou a rede, torceu-a e, quando terminou, estendeu-a. Depois, desceu
para a água e disse: “Em nome de Alá!” e atirou novamente
a rede, esperando que chegasse ao fundo. Tentou retirá-la mas notou
que, como antes, estava presa ao fundo. Acreditando ser um grande peixe,
amarrou a ponta a uma estaca, despiu-se e mergulhou. Quando levou a rede
à margem, encontrou nela um jarro enorme, cheio de lama e areia.
Vendo aquilo, disse: “Ó traicoes da sorte! Piedade! Que tristeza.
Sobre a terra, nenhuma recompensa é igual ao mérito, nem
digna do sacrifício. Às vezes saio de casa para procurar
a fortuna. E dizem-me que ela morreu há tempos. Miséria.
É assim, ó Fortuna, que relegas os sábios à
obscuridade, para deixar que os tolos governem o mundo.”
Depois, atirou o jarro para longe de si, torceu a rede, limpou-a, pediu
perdao a Alá pela sua revolta e voltou ao mar pela terceira vez.
Atirou a rede, esperou que ela atingisse o fundo e, tendo-a retirado, encontrou
potes quebrados e pedaços de vidro. Vendo aquilo, recitou outra
vez versos de um poeta: “Ó Poeta, o vento da fortuna jamais soprará
ao teu laod! Ignoras, ingênuo,que nem tua pena de caniço
nem as linhas harmoniosas de tua escrita não te hao de enriquecer?”
E, erguendo a cabeça para o céu, exclamou: “Alá!
Tu o sabes! Eu não te atiro minha rede senão quatro vezes.
Ora, eis que a deitei três vezes ao mar!” depois disso, invocou ainda
uma vez o nome de Alá e jogou a rede ao mar, esperando que deitasse
ao fundo. Dessa vez, apesar de todos os esforços, não conseguiu
retirar a rede que se agarrou às rochas do fundo. Então exclamou:
“Não há força e poder senão em Alá!”
Depois, despiu-se, mergulhou em torno da rede e se pôs a manobrar
até que a desprendeu e a trouxe para terra. Abriu-a e ali encontrou
um grande vaso de cobre amarelo, cheio e intacto. Sua boca estava selada
com chumbo, trazendo o sinete de Salomao, filho de Davi. Vendo aquilo,
o pescador ficou muito feliz, e exclamou: “Eis uma coisa que venderei aos
caldeireiros, pois deve valer pelo menos 10 dinares de ouro!” Tentou sacudir
o vaso, mas viu que era muito pesado, e disse consigo mesmo: “Preciso abri-lo
e ver seu conteúdo, que colocarei no saco; em seguida venderei o
vaso.” Tomou, então, uma faca e começou a descolar o chumbo.
Virou o vaso e dele nada saiu, exceto uma fumaça que subiu até
o céu, e se desenrolou na superfície do solo. O pescador
espantou-se. Depois a fumaça condensou-se e se transformou num ifrit,
cuja cabeça tocava as nuvens e os pés ficavam plantados ao
chão. A cabeça daquele ifrit era como uma cúpula,
as maos como forcados, os pés como mastros, sua boca uma caverna,
seus dentes como seixos, seus olhos como tochas. Seus cabelos estavam em
desordem e empoeirados. À vista daquele gênio, o pescador
ficou apavorado, seus músculos tremeram, seus dentes serraram, a
saliva secou e seus olhos cegaram para a luz.
Quando o ifrit viu o pescador, exclamou: “Não há outro
Deus senão Alá, e Salomao é o profeta de Alá!”
E dirigindo-se ao pescador, disse-lhe: “E tu, ó grande Salomao,
profeta de Alá, não me mates, porque nunca mais te desobedecerei
e não me amotinarei contra tuas ordens!” Então o pescador
disse: “Gigante, ousas dizer que Salomao é o profeta de Alá!
Salomao morreu há mil e oitocentos anos, e nós estamos no
fim dos tempos. Que história é essa, então? Qual a
causa de tua entrada neste vaso?” O gênio respondeu: “Não
há outro Deus senão Alá! Deixa-me dar uma boa nova,
pescador.” O pescador disse: “O que me vais anunciar?” Ele respondeu: “Tua
morte. E neste mesmo momento, e da mais horrível maneira.” O pescador
respondeu: “Por essa notícia tu mereces, ó tenente dos ifrits,
que o céu te retire sua protecao! E possa ele afastar-te de nós!
Por que, pois, queres tu minha morte? O que fiz para merecê-la? Libertei-te
daquela prolongada prisao no mar e te trouxe a terra!” Então o ifrit
disse: “Pensa e escolhe a morte que preferes, e a forma pela qual apreciarás
ser morto!” O pescador disse: “Qual o meu crime, para merecer tal punicao?”
O ifrit falou: “Escuta minha história, ó pescador.” O pescador
disse: “Fala! E sê breve em teu discurso porque minha alma, de impaciência,
está a ponto de sair de meu pé!” O ifrit então contou:
“Sabe que sou um gênio rebelde. Havia me revoltado contra Salomao,
filho de Davi. Meu nome é Sakir-El-Gênio. Salomao mandou ter
comigo seu vizir, Assef, que me levou, apesar de meus esforços,
e me conduziu à presença de Salomao. Vendo-me, Salomao fez
a conjuracao a Alá e me ordenou abraçar sua religião
e lhe prestar obediência. Recusei. Então ele fez trazer este
vaso e nele me aprisionou. Depois, fechou-o com chumbo e imprimiu nele
o sinete com o nome do Muito Alto. Depois deu ordens aos gênios fiéis
que me atiraram ao mar. Fiquei cem anos no fundo da água, e dizia
em meu coração: “Farei eternamente rico aquele que me libertar.”
Mas os cem anos se passaram e ninguém me libertou. Quando entrei
no segundo período de cem anos, disse comigo: “Descobrirei e darei
os tesouros da terra `àquele que me libertar.” Mas ninguém
me libertou. Então, fiquei tomado de tremenda cólera e disse
em minha alma: “Agora, matarei aquele que me libertar, e só lhe
concederei que escolha a sua morte! Foi então que tu vieste me libertar.
E te concederei que escolhas teu gênero de morte.”
Ouvindo isso, o pescador disse: “Ó Alá, que coisa mais
prodigiosa! Foi preciso que fosse logo eu quem te libertasse. Ó
ifrit, concede-me graça, e Alá te recompensará! Mas
se me fizeres perecer, Alá fará surgir alguém que
te faça perecer por tua fez.” Então o ifrit lhe disse: “Mas
eu quero te matar justamente porque me libertaste.!” E o pescador disse:
“Ó chaik dos ifrits é assim que tu pagas o bem?” Mas o ifrit
lhe disse: “Chega de abusar das palavras! Sabes que é absolutamente
necessária a tua morte!” Então o pescador disse consigo mesmo:
“Eu não sou senão um homem e ele é um gênio.
Mas Alá deu-me uma razao bem assentada e assim vou arranjar um meio
para perdê-lo, um estratagema para enganá-lo. E verei bem
se ele, por sua vez, poderá combinar alguma coisa com sua malícia
e sua astúcia.” Então ele disse ao gênio: “Decidiste
verdadeiramente a minha morte.” O ifrit respondeu: “Não tenhas dúvidas.”
Então ele disse: “Pelo nome do Muito Alto, que está gravado
sobre o sinete de Salomao, conjuro-te a responder com a verdade à
minha pergunta!” Quando o ifrit ouviu o nome do Muito Alto, ficou emocionado
e muito impressionado, e disse: “Podes fazer a pergunta, que te responderei
com a verdade.” Então o pescador disse: “Como pudeste caber inteiro
neste vaso onde mal caberiam teu pé ou tua mão?” O ifrit
disse: “Por caso duvidarias disso?” O pescador respondeu: “Com efeito eu
não acreditarei nunca, a menos que te veja com meus próprios
olhos, entrar no vaso.”