Não gosto nem admito fanfarrices perto de mim. Freqüentemente
encontro sujeitos maturrangos contando façanhas e fazendo gatimonhas
de campeiros e a todo instante falando - no meu cavalo... porque o meu
cavalo... e o meu cavalo... e vai-se a ver trata-se de um sotreta qualquer,
assoleado ou manco.
Cavalo, o que se diz - cavalo -, de chapéu na mão, foi
o meu rosilho "Piolho"!
Isso, sim, era de se lavar com um bochecho d'água; de cômodo,
era uma rede! De patas, um raio! De rédea, como uma balança!
E manso como um cordeiro, de boa boca como um frade, faceiro como uma rosa,
e armado, de barba ao peito, como um conde de baralho!
A não ser um azulego do capitão Manduquinha Pereira nunca
encontrei outro pingaço para cotejo. Foi domado pelo Chico Piola
e não preciso dizer mais nada.
Morreu de garrotilho, até hoje ainda me treme a raiz da alma
quando lembro o garbo do meu rosilho...
Uma vez, andava eu, de escoteiro, para as bandas do Alegrete. Calor
de rachar. Lá pelas tantas, desviei-me da cruzada sobre uma restinga,
disposto a dar um alce ao rosilho e ao mesmo tempo tirar uma sesteada,
até abrandar a quentura.
Apeei-me à sombra de um salsal; dei água ao flete e mandei-o,
para um verdeiozito. Era ele cavalo mui mestre nestas cousas.
Em seguida estendi os arreios e aplastei-me sobre os pelegos, de carnal
pra cima; puxei o chapéu para os olhos e encruzei os braços
sobre a boca do estômago, tendo antes posto de jeito o facão
e a pistola, por um - se acaso... Nem as folhas buliam, nem um passarinho
cantava, apenas um que outro trilirim de gafanhoto vermelho saltando nas
macegas. Nem quero-quero fazia ronda!...
Assim tirei uma cochilada morruda e iria a mais se...
Amigo! ouvi um tronar forte, de tremer o chão! Era um temporal
de verão, desses que não dão tempo nem de se apagar
o cigarro!
Foi o quanto saltei das caronas e trouxe o rosilho, enfrenei-o - num
vá! - sentei-lhe as garras - num vu! - e montei de pulo... A trovoada
roncava, logo ali no outro lado da canhada.
Via-se cair a chuva, em manga, em linha, e via-se muito bem porque
o sol dava de refilão pela esquerda. E todo aquele borbotão
d'água que desabava corria sobre mim, no pé-do-vento.
Levantei as rédeas, firmei-me nos estribos e trepei a coxilha...
e no que achei campo em frente, rumbeei para a estância do falecido
João Silvério, que branqueava lá longe, obra de três
quartos de légua, cortando à direita.Nisto senti um - tchá!
tchá! tchá! - atrás de mim; olhei, de relancina apenas,
porque nem tempo para mais, tive; era o temporal, a bomba d'água
que se despenhava, quase nos garrões do rosilho! Foi o quanto amaguei
o corpo e toquei, de meia rédea.
Cupins e buracos de caranguejos, tacurus, macegas e carquejas, sangas,
lagoas, barrais - o diabo! - não vi mais nada! Se rodasse, nem o
sebo da coalheira se me aproveitava!...
Mas o rosilho "Piolho" era firme e bonzão, sem mais nada!
Eu corria, é verdade, porém a manga d'água também
corria... A polvadeira que eu levantava a chuvarada engolia logo.
Eu sentia-lhe a frescura, percebia que estava-me na garupa, na anca
do rosilho, nos garrões dele! Um que outro pingo de chuva mais ponteiro
batia-me às vezes na aba do chapéu...
Era um duelo esquisito. Um duelo, em que um valente fugia para ficar
vencedor!
Vencer, aqui, era chegar enxuto.
E assim viemos, eu e a tormenta, na mesma disparada: a que te pego!
a que te largo! a que te pego! a que te largo! - Já perto das casa,
vi a gente do João Silvério, e ele mesmo, todos de mão
em pala sobre os olhos, gozando aquela gauchada.
Isso foi rápido, pois logo todos entraram, a fechar portas e
janelas, quando viram que eu vinha feito sobre o galpão.Quando ia
mesmo a entrar, saiu-me a cachorrada, furiosa, enovelando-se, em latidos
e investidas: suspendi a rédea com pena de matar algum debaixo das
patas...
Olhem que isto foi como um pensamento; mas foi o tempinho bastante
para o demônio da chuva molhar a anca do cavalo! Fiquei furioso!
Se não tenho a pieguice de poupar um daqueles ladrões daqueles
cachorros, a chuva não me tocava, nem na cola do rosilho: chegaria
enxuto!
Assim é que entendo cavalo bom. O João Silvério
ficou doido pelo "Piolho"; dava-me cem onças de ouro, um apero completo,
de prataria lavrada, por fim, de quebra, por cima de tudo, ainda me tenteou
com um rodeio tambeiro. Um horror de propostas. Mas eu não quis.
Durante muitos anos aí esteve ele vivo e são, que podia
contar este caso, tal qual eu. Hoje não sei que fim levou essa gente,
e mesmo se eu quisesse ir agora a essa estância, talvez não
atinasse mais com o caminho, por causa da divisão dos campos, estradas
novas, cercas e corredores que despistam muito um vaqueano... Mas o caso
passou-se, isso, passou-se!! mal... apenas a chuva tocou a anca do baio...
e isso mesmo por causa dos cachorros do João Silvério!