Ela disse:
Contaram-me, Rei, que quando os peixes começaram a falar, a jovem
revirou a frigideira com sua vareta, saiu por onde havia entrado e a parede
da cozinha se fechou. O vizir levantou-se e disse: “Aí está
uma história que não poderei esconder do rei!” Depois, foi
ter com o rei e lhe contou o que se passara. O rei lhe disse: “Preciso
ver isso com meus próprios olhos!” E mandou procurar o pescador
e ordenou-lhe que voltasse com quatro peixes iguais, dando-lhe para isso
três dias de prazo. Mas o pescador depressa voltou ao lago e trouxe
imediatamente os peixes. O rei deu-lhe quatrocentos dinares e voltando-se
para o vizir, falou: “Prepara tu mesmo, diante de mim, esses peixes.” E
o vizir disse: “Eu ouço e obedeço.” Então fez trazer
a frigideira e se pôs a fritá-los. De repente, a parede da
cozinha se abriu e dela surgiu um negro que parecia um búfalo, ou
um dos gigantes da tribo de Had. E ele trazia na mão um ramo verde
de árvore. E disse, com voz distinta e terrível: “Peixes,
peixes, continuais mantendo sua promessa?” E os peixes levantaram
a cabeça, de dentro da frigideira, e disseram: “Sim, certamente!”
E, em coro, declamaram esses versos:
Ora, esse vizir era um homem sábio, versado em todas as ciências.
Quando se apresentou diante do rei, este lhe disse: “Tenho a intenção
de fazer uma coisa e antes vou te dizer o que; veio-me a idéia de
me isolar esta noite, e de procurar sozinho a solução do
mistério deste lado e seus peixes. Tu, pois, ficará à
porta da minha tenda e dirás aos emires, vizires e aos camareiros
que estou indisposto e que não quero ver ninguém. E não
contarás a ninguém minha intenção.” Dessa forma,
o vizir não podia desobedecer. Então o rei disfarçou-se,
cingiu a espada e se esgueirou para longe de seus acompanhantes, sem ser
visto. Depois do que se pôs a caminhar pelo deserto, o que fez até
a manhã do dia seguinte. Eis que viu, à distância,
uma mancha; regozijou-se, dizendo: “É provável que ali eu
encontre alguém que me explique a historia dos peixes!” Ao se aproximar,
viu que era um palácio inteiramente de ferro, cuja porta tinha
um batente aberto e outro fechado. Bateu à porta, mas não
ouvindo resposta, bateu uma segunda e uma terceira vez; continuando a não
ouvir resposta, bateu uma quarta fez, com muita força, mas ainda
assim ninguém lhe respondeu. Então ele disse para si: “Este
palácio está deserto.” Tomando coragem, entrou pela porte,
chegando a um corredor. Ali, disse, em voz alta: “Senhores do palácio,
sou um estrangeiro, um viajante dos caminhos e peço provisões
para viagem!” Repetiu duas vezes o pedido. Não ouvindo qualquer
resposta, respirou fundo e penetrou pelo corredor até o meio do
palácio. Nada. Vazio. Viu, no entanto, que o palácio estava
ricamente coberto de tapetes, e que no meio do pátio interno havia
uma piscina, sobre a qual se erguiam quatro leões, que deixavam
correr água de suas bocas, sobre pérolas e pedrarias belíssimas.
Em volta, numerosos pássaros que não podiam voar para fora
em virtude de uma rede que se estendia sobre o edifício. E o rei
maravilhou-se com tudo aquilo, mas se afligiu por não encontrar
ninguém que contasse a respeito do segredo dos peixes. Sentou-se
na porta, pensando. De repente, ouviu um lamento muito fraco, que vinha
de um coração abatido e triste.
Quando o rei ouviu os lamentos, levantou-se e se dirigiu para o lado
de onde eles vinham. Encontrou uma porta separada do cômodo anterior
por uma cortina. Levantou aquela cortina e, numa grande sala, viu um rapaz
jovem, sentado sobre uma cama, da cintura para baixo coberto por uma colcha
ricamente bordada.
Vendo-o, o rei ficou feliz e lhe disse: “A paz esteja contigo.”
E o jovem continuou sentado, vestido com uma roupa de seda e ouro. “Ó
senhor, desculpe-me por não me levantar!” Mas o rei disse: “Jovem,
esclarece-me sobre a história do lado e dos peixes, assim
como sobre este palácio e sobre a causa de tuas lágrimas!”
A essas palavras, o jovem chorou ainda mais, deixando que as lágrimas
corressem pelas faces. O rei, espantado, falou: “Ó jovem, o que
te faz chorar?” E o jovem respondeu: “Como posso deixar de chorar quando
estou reduzido a isto?” E o jovem estendeu a mão para as barras
da colcha que o cobria e levantou-a. E então o rei viu que toda
a metade inferior do jovem era de mármore, e a outra metade, do
umbigo à cabeça, era de homem. E o jovem disse ao rei: “Sabe,
ó senhor, que a história dos peixes é coisa estranha,
que, se fosse escrita com a agulha sobre o canto interior do olho, para
ser vista por todos, seria uma lição para o observador atento!”
E contou sua história:
HISTÓRIA DO JOVEM ENCANTADO E DOS PEIXES
“Senhor, saiba que meu pai era o rei desta cidade. Seu nome era Mahmud,
e ele era senhor das Ilhas Negras e daquelas quatro montanhas. Meu pai
reinou por setenta anos, depois do que se extinguiu, na misericórdia
do Retribuidor. Depois de sua morte, recebi o sultanato, e me casei com
a filha de meu tio. Ela me amava de uma forma tão poderosa que se
por acaso eu me ausentasse, ela não comia nem bebia enquanto não
me tornava a ver. E ficou sob minha proteção durante cinco
anos, até que um dia foi ao hammam, depois de ter ordenado ao cozinheiro
que nos preparasse iguarias para o jantar. E eu entrei no palácio
e adormeci no lugar onde costumava dormir, e ordenei a duas escravas que
me abanassem com seus leques. Mas fui sendo tomado pela insônia,
pensando na ausência de minha esposa, e o sono não vinha.
Então ouvi a escrava que estava atrás de minha cabeça
dizer à que estava a meus pés: “Massuda, como nosso senhor
é afligido por uma juventude infeliz! E que lástima é
para ele ter uma esposa como nossa senhora, essa pérfida, essa criminosa!”
E a outra respondeu: “Que Alá amaldiçoe as mulheres adúlteras!
Por que aquela filha adulterina poderia ter alguém melhor do que
nosso senhor, ela que passa suas noites em leitos variados?” E outra respondeu:
“Verdadeiramente, nosso senhor deve ser bem despreocupado para não
se dar conta dos atos daquela mulher!” E a outra: “Mas que estás
supondo? Nosso senhor pode, acaso, saber o que ela faz? Ou tu estás
pensando que ela o deixa agir com toda a liberdade? Fica então sabendo
que aquela pérfida mistura sempre alguma coisa na taça em
que nosso senhor bebe, antes de adormecer; coloca bânj (narcótico)
na taça e ele tomba adormecido. Nesse estado, não pode saber
o que se passa, nem onde ela vai, nem o que ela faz. Ora, depois de lhe
fazer beber a dormideira, ela se veste e sai, deixando-o só, e ausenta-se
até a aurora. Quando volta, queima-lhe sob o nariz umas coisas de
cheirar, e ele então acorda.
Quando ouvi, meu senhor, as palavras das escravas, a luz se transformou
a meus olhos em trevas. Custava-me ver a aproximação da noite
para estar novamente com a filha do meu tio. Ela voltou, finalmente, do
hammam. Então, estendemos a toalha e comemos durante uma hora. Depois
do que, pedi o vinho que eu bebia todas as noites antes de dormir, e ela
me estendeu a taça. Mas tive o cuidado de não beber; fingi
levar a taça aos lábios como de costume, e derramei o líquido
pela abertura da gola de meus trajos, e na mesma hora, no mesmo instante,
estendi-me no leito e fingi dormir. E ela então disse: “Dorme! E
jamais possas acordar! No que se refere a mim, por Alá, detesto-te,
e detesto até tua imagem: e minha alma está mais que
farta do teu convívio!” Depois, levantou-se, vestiu linda roupa,
perfumou-se, cingiu uma espada, abriu a porta do palácio e saiu.
Então me levantei e segui-a até que ela tivesse saído
do palácio. E ela atravessou todos os sus da cidade e chegou enfim
às portas dela. Então, dirigiu-se às portas numa língua
estranha, que eu não compreendi, e os ferrolhos tombaram e as portas
se abriram. Ela saiu. Segui-a sem que ela percebesse, até que chegou
às colinas formadas pelo amontoado dos resíduos e a uma fortaleza
coberta com uma cúpula e construída de barro cozido: ela
entrou pela porta, e eu subi para o terraço da cúpula e me
pus a vigiar lá de cima. E eis que ela entrou no aposentou de um
negro. Aquele negro horrível tinha o lábio superior como
a tampa de uma marmita e o inferior como a própria marmita; e esses
dois lábios pendiam até tão embaixo que poderiam separas
as pedras da areia. E ele estava doente e estendido sobre um pouco de palha.
Vendo-o, a filha de meu tio beijou a terra diante dele e ele, levantando
a cabeça para ela, disse: “A desgraça caia sobre ti!
Por que tardaste em vir? Convidei os negros, que se puseram a beber vinhos
e se misturaram às suas amantes. Quanto a mim, nada quis beber,
por tua causa!” Ela disse: “Meu senhor e querido do meu coração!
Não sabes que sou casada com o filho do meu tio? E que detesto até
a imagem dele? E que para mim é um horror estar na companhia dele?
Aliás, não fosse o receio de que isso viesse a te prejudicar,
há muito teria arruinado a cidade, de alto a baixo, e feito que
apenas a voz do mocho e do corvo ali fossem ouvidas; e teria transportado
as pedras das ruínas para trás do monte Cáucaso!”
O negro respondeu: “Mentes, libertina! Ora, eu juro pelas qualidades viris
dos negros e pela nossa infinita superioridade de homens em relação
aos brancos, que se outra vez te atrasares assim, repudiarei a tua amizade
e não porei mais meu corpo sobre o teu! Pérfida traidora!
Não estás assim atrasada senão porque foste saciar
algures teus desejos de fêmea, ó mais infame das mulheres
brancas!” Depois, tomou-a sob seus braços. E aconteceu o que aconteceu.”
Assim narrou o príncipe, dirigindo-se ao rei. E continuou: “Quando
ouvi aquela conversa e vi com meus próprios olhos o que se seguiu
entre os dois, o mundo se transformou em trevas diante do meu rosto, e
eu não soube mais onde estava. Em seguida, a filha de meu tio se
pôs a chorar e a se lamentar humildemente nas mãos do negro,
e a dizer: “Ó meu amante, ó fruto do meu coração,
não me resta senão tu! Se tu me expulsas, então estou
desgraçada! Ó querido, luz dos meus olhos!” E ela não
cessou de chorar e de implorar para que ele a perdoasse. Aí, ela
ficou toda feliz e levantando-se, de pé, sem nada ter sobre o corpo,
nem mesmo um calção, toda nua, disse: “Ó meu mestre,
tens com que nutrir a tua escrava?” e o negro respondeu: “Levanta a tampa
da marmita e ali encontrarás um picadinho feito com ossos de ratos,
que tu comerás até moer os ossos; depois apanha a vasilha
que ali está e encontrarás buza (bebida fermentada) que beberás.
E ela se levantou, e comeu, e bebeu, e lavou as mãos; depois voltou
e se deitou com o negro na palha dos juncos; e nua, aconchegou-se contra
o negro, naqueles farrapos infectos.
Quando eu vi todas as coisas que a filha do meu tio fazia, não
pude mais me conter e desci do alto da cúpula, precipitando-me na
sala e arrancando a espada, resolvido a matar os dois infames. Comecei
por ferir o negro no pescoço, e pensei que o havia transpassado.”