Uma história horripilante

Gaston Leroux

 

"Do chinês, do malgaxe e do sudanês explicou Dorée confidencialmente -, não sei seus verdadeiros nomes, nem suas idades, nem nada; e ninguém o sabe em Toulon. É estranho vê-los aqui... são de Mourillon, do mesmo Mourillon. São capitães das colônias. Em cada quatro anos passam três nesses países da China, em Madagascar e no Sudão, e durante o quarto refazem o fígado à beira do mar, tomando sol no jardinzinho duma vila... De todos eles dizem: "Vivem aqui como em terras de selvagens... Comem o mesmo que selvagens, enfim, tudo!..."

(Claude Farrère: Os pequenos aliados.)

 

 

O capitão Miguel tinha apenas um braço, que lhe servia para movimentar seu cachimbo. Era um velho lobo do mar, a quem conheci em Toulon, ao mesmo tempo que a outros velhos lobos do mar, numa tarde, ao tomar o aperitivo, no terraço dum café do Dique Velho. E adquirimos o costume de reunir-nos, junto das copas, a dois passos das alvoroçadas águas e das lanchas dançarinas, à hora em que o sol mergulha na baía de Tamaris.

Os outro quatro velhos lobos do mar se chamavam Zinzin, Dorat (o capitão Dorat), Bagatela e Chaulieu (aquele tunante do Chaulieu). Não é preciso dizer que tinham navegado por todos os mares e que lhe haviam ocorrido mil aventuras; e agora, já retirados, matavam o tempo contando histórias horripilantes uns aos outros.

O capitão Miguel era o único que nunca contava coisa alguma. E como o que ouvia não parecia causar-lhe o menor assombro, esta atitude acabou por exasperar os outros, que lhe disseram:

Os quatro velhos riram a mais não poder, e declararam que indubitavelmente o capitão Miguel procurava dar muita importância ao fato, mas que era mero pretexto para não lhes contar coisa alguma, porque, no fundo, "talvez nada lhe tivesse acontecido!"

O capitão fitou-os um instante; depois, resolvendo-se instantaneamente, pousou seu cachimbo na mesa, com um movimento nervoso. Aquele gesto insólito era já, por si só, aterrador.

Naquela época, isto há uns vinte e cinco anos, possuía eu em Mourillon uma casinha herdada de minha família, pois esta vivera muito tempo neste povoado, e eu mesmo nasci com ele. Gostava de descansar, entre as longas viagens, naquele cantinho. Alem disso, eu me tinha afeiçoado àquele bairro, onde vivia em paz com a pouco molesta vizinhança, formada de marinheiros e empregados das colônias, que se deixavam ver uma que outra tarde, ocupados como estavam, em geral, fumando tranqüilamente ópio com suas amigas, ou outros misteres que não me interessavam, pois cada um tem lá seus hábitos, não é mesmo? E contanto que não me obrigassem a alterar os meus...

Precisamente uma noite tive de alterar o hábito de dormir que eu tinha. Um tumulto esquisito, de cuja natureza não me era possível certificar-me, fez-me despertar sobressaltado. Minha janela ficava aberta, como sempre. Eu escutava assombrado um ruído estranho, que tinha um pouco do matraqueio do trovão e do rufar dum tambor... mas que tambor! Dir-se-ia que duzentas baquetas martelavam desesperadamente, não o emplastro de pele de burro, mas um tambor de madeira...

E este estrépito saía da vila em frente, que estava desabitada havia cinco anos, e onde, na véspera, tinha eu visto uma placa: "Vende-se".

Da janela de meu quarto, minha vista, passando por cima da cerca do jardim que rodeava aquela vila, lobrigava toda as portas e janelas, mesmo as do pavimento térreo. Ainda estavam fechadas, como as tinha visto eu naquele dia. Contudo, pelos interstícios da madeira do pavimento de baixo, vi luz. Quem, que espécie de gente se teria introduzido naquela casa isolada, nos arredores de Mourillon? Que pandilha penetrara naquela fazendola abandonada, e que malévola reunião se celebrava nela?

O singular ruído, semelhante ao ribombo do trovão, ao rufar dum tambor de madeira, não cessava. Durou cerca de uma hora e depois, pela madrugada, abriu-se a porta da vila e, de pé no dintel, sem nada na cabeça, apareceu a criatura mais linda que já vi na minha vida. Estava em traje de baile e, com infinita graça, sustinha uma lanterna cujo resplendor iluminava uns ombros de deusa. Sorria, doce e placidamente, enquanto pronunciava estas palavras, que ouvi perfeitamente, no silêncio da noite:

Mas, a quem dizia isso? Foi-me impossível sabê-lo, porque não vi ninguém perto dela. Permaneceu no umbral, com a lanterna na mão, até o momento em que a porta do jardim se abriu por si só, e tornou a se fechar, também sozinha. Depois a porta da vila se fechou por sua vez, e não vi mais nada.

Julguei ter enlouquecido, ou estar sonhando, porque me dava perfeitamente conta de que era impossível uma pessoa atravessar o jardim sem que eu a visse.

Ainda continuava no mesmo lugar, assomando à minha janela, incapaz de mover-me ou de pensar, quando a porta da vila se abriu pela segunda vez, e apareceu a belíssima criatura de momentos antes, sempre com a lanterna na mão, e sempre só!

E, silenciosa e sozinha, atravessou o jardim, detendo-se à porta, onde batia em cheio a luz da lanterna, tanto que vi perfeitamente o trinco daquela porta girar sobre si mesmo, sem que mão alguma a tocasse. Por fim, abriu-se a porta, completamente só, ante aquela mulher, que não manifestou, aliás, o menor assombro. Preciso advertir que eu estava colocado de tal maneira que via, ao mesmo tempo, quanto se passava diante e atrás daquela porta, isto é, que a via de través.

A "celestial aparição" fez uma deliciosa senha com a cabeça, dirigida à Noite, que a luz deslumbrante da lanterna iluminava; depois sorriu e disse:

No mesmo instante ouvi diversas vozes que repetiam:

E, como a misteriosa dama se dispusesse a fechar a porta, ouvi:

E a porta se fechou sozinha.

O espaço encheu-se, por um instante, de pios dum bando de passarinhos... cuí.. cuí... cuí... e foi com se aquela formosa mulher tivesse aberto a gaiola a uma ninhada de desesperados pardais.

Regressou tranqüilamente à sua casa. As luzes do pavimento térreo estavam apagadas, mas as janelas do principal apareciam iluminadas.

Ao chegar à vila, disse a dama:

Não ouvi a resposta, mas a porta da vila fechou-se de novo... e poucos instantes depois se apagaram as luzes do pavimento superior.

Às oito da manhã permanecia eu ainda em minha janela, contemplando como um bobo aquele jardim, aquela vila, na qual tinha visto coisas tão singulares durante a noite, e que, naquele momento, à deslumbrante luz do sol, me aparecia sob seu aspecto habitual. O jardim estava deserto, e a casa parecia tão abandonada como no dia anterior.

Tanto que, quando falei à minha antiga empregada, que acabava de entrar, das estranhas cenas que tinha presenciado, me tocou a testa com seu dedo sujo e declarou que eu havia fumado uma cachimbada de mais. Pois bem: eu nunca fumo ópio e esta resposta foi a razão definitiva por que pus a rua aquela fregona, da qual há muito queria me desembaraçar, e que vinha sujar minha casa durante duas horas diárias. Além disso, já não precisava de ninguém, de vez que no dia seguinte, deveria tornar ao mar.

Não tinha tempo senão para arrumar minha equipagem, fazer algumas compras, despedir-me dos meus amigos e tomar o trem para Havre, onde um novo contrato com a Transatlântica ia me ter ausente de Toulon pelo espaço de onze ou doze meses.

Quando regressei a Mourillon não tinha falado a ninguém de minha aventura, porém nem um só instante havia deixado de pensar nela. A imagem da mulher de lanterna me perseguia por todas as partes, e as últimas palavras que dirigira a seus amigos ressoavam incessantemente em meus ouvidos: "Vá! Adeus! Até o ano que vem!"

Eu não pensava senão naquele encontro. Tinha resolvido por minha vez acudir a ela, e descobrir, custasse o que custasse, a chave dum mistério que devia intrigar até à loucura um homem sensato como eu, que não acreditava em aparições nem em histórias de barcos fantasmas.

Ah! Depressa havia de me convencer de que nem o céu, nem o inferno, tinham qualquer coisa a ver com aquela espantosa aventura...

Às seis da tarde penetrei em minha vila de Mourillon. Era a antevéspera do aniversário da famosa noite.

A primeira coisa que fiz ao entrar em minha casa foi correr à janela do andar superior e abri-la. Quando me assomei vi (porque estávamos no verão, e ainda era completamente de dia), uma mulher de estonteante beleza, que passeava tranqüilamente pelo jardim em frente, colhendo flores. Ao ruído que fiz, levantou a cabeça. Era a dama da lanterna! Reconheci-a; estava tão linda de dia como de noite. Tinha a pele tão branca como os dentes de um negro do Congo, os olhos tão azuis como a baía de Tamaria e uma cabeleira loura, tão suave como a mais fina espiga. Por que não hei de confessá-lo? Ao ver aquela mulher, na qual não tinha cessado de pensar durante um ano, o coração me deu uma viravolta. Ah, não era uma ilusão de minha mente enferma! Estava de fato diante de mim, em carne e osso! À sua retaguarda, todas das janelas da casa apareciam abertas, cheias de flores, pelos seus cuidados. Aquilo nada tinha de fantástico.

Viu-me e imediatamente manifestou viva contrariedade. Continuou andando pela rua principal de seu jardinzinho, e depois, dando de ombros, como contrariada, disse:

Olhei para todos os lados. Ninguém!... Com quem falava?... com ninguém!...

Estaria louca?... Não o parecia.

Via-a dirigir-se à casa. Flanqueou o umbral, cerrou a porta e, imediatamente, todas as janelas.

Aquela noite não observei nem ouvi nada de particular. No dia seguinte, lá pelas dez horas, vi minha vizinha que, em traje de passeio, atravessava seu jardim. Fechou a porta à chave, e afastou-se pelo caminho de Toulon. Desci também. Ao primeiro caixeiro que encontrei apontei-lhe a elegante silhueta, e perguntei se sabia o nome daquela mulher. Respondeu-me:

Como vocês compreenderão, minha curiosidade ia aumentando. Fui a Toulon para interrogar o engenheiro-chefe que alugara a vila ao casal. Tampouco ele tinha visto o marido, porém me disse que se chamava Geraldo Beauvisage. Ao ouvir este nome, soltei um grito. Geraldo Beauvisage! Mas se o conhecia muito! Eu tinha um velho amigo, oficial de infantaria da marinha, que se chamava assim, e a quem não via fazia vinte e cinco anos, data em que tinha saído de Toulon para Tonquim! Como duvidar que fosse ele? Em todo o caso, tinha um excelente pretexto para me apresentar em sua casa, e resolvi ir apertar-lhe a mão naquela noite mesmo, aniversário da noite memorável, que era quando ele esperava seus amigos.

Ao regressar a Mourillon vi diante de mim, no caminho que levava à vila Mokoko, a silhueta da minha vizinha. Não vacilei: apertei o passo e cumprimentei.

Ruborizou-se e quis continuar seu caminho sem responder.

Parecia horrivelmente perturbada e, em seu sobressalto, estava mais bonita ainda, se é possível. Eu continuei, a despeito da vontade que ela manifestava de escapar.

E, vendo que acelerava o passo, saudei-a; porém, ao ouvir minhas últimas palavras, mostrou uma agitação cada vez mais inexplicável.

E ajuntou, em tom de súbita tristeza:

Soltou um grito.

Após estas palavras fugiu, mas se deteve repentinamente, em sua fuga e voltou-se para mim, mais pálida que um defunto.

E desapareceu atrás da cerca. Entrei em minha casa. Tive o cuidado de não assomar à janela que dava para o jardim. Todavia, apesar disso, vigiei meus vizinhos. Não saíram em todo o dia e, muito antes do anoitecer, vi as janelas cerradas e, pelas frestas, a mesma claridade, os mesmos resplendores que tinha vislumbrado um ano antes, naquela noite singular. Só que ainda não ouvia o estranho ruído de trovões, de tambor de madeira...

Às oito horas vesti-me, recordando o traje de reunião da dama da lanterna. As últimas palavras da senhora Beauvisage recebia aquela noite seus amigos, e não se atreveria a pôr-me na rua. Depois de meter um fraque, desci. Vacilei um instante, pensando se deveria tomar meu revólver e, por fim, deixei-o no seu lugar, achando tolice levá-lo.

A tolice foi não tê-lo levado.

No umbral da vila Makoko fiz girar resolutamente a aldrava que no ano anterior tinha visto girar por si só. E, com grande assombro meu, a porta se abriu. De modo que esperavam alguém.

Atravessei o jardim por entre dois canteiros de verbenas em flor. Ao chegar à porta, bati.

Reconheci-a; era a de Geraldo. Entrei alegremente na casa. Encontrei-me primeiro no vestíbulo e, depois, como encontrasse aberta a porta dum salão e este se achasse iluminado e vazio, penetrei nele, gritando:

Ser-me-ia impossível descrever-lhes meu estupor. Ouvi Geraldo, mas não o via! Sua voz ressoava ao meu lado, e junto de mim não havia ninguém! Não vi pessoa alguma no salão!...

A voz continuou:

Levantei a cabeça.. e então vi... lá em cima... no topo da altíssima lareira, um busto...

Aquele busto era o falava. Parecia-se com Geraldo. Era o busto dele. Estava colocado ali, na lareira, como se costuma colocar os bustos... Era um busto idêntico ao que fazem os escultores, isto é, sem braços...

Disse-me:

E o busto desatou a rir.

Acreditei ser vítima de uma ilusão de ótica, como acontece nas feiras, onde, graças a uma combinação de espelhos, se vêem bustos de homem, cheios de vida, que não estão ligados a coisa alguma; porém, depois de ter colocado meu amigo sobre a mesa, tive de me convencer de que aquela cabeça e aquele tronco sem braços nem pernas era o único que restava do arrogante oficial que em outros tempos conhecera. O tronco descansava diretamente num desses carrinhos que usam os aleijados, mas meu amigo nem sequer tinha o princípio das pernas, que é costume ver-se mesmo nos aleijados. Quando lhes digo que não era senão um busto!

Os braços tinham sido substituídos por ganchos, e não lhes posso explicar como se arranjava, ora apoiando-se num, ora noutro, para saltar, brincar, retroceder, e executar cem movimentos rápidos, que o precipitavam da mesa para uma cadeira e da cadeira para o chão, para fazê-lo reaparecer, instantaneamente, em cima da mesa, onde desatava a rir nas minhas barbas. Parecia muito alegre.

Eu, por minha parte, estava consternado; não pronunciara uma palavra e fitava aquele fenômeno, que seguia fazendo piruetas e me dizia com seu sorriso inquietante:

Afastou-se e imediatamente apareceu a dama da lanterna. Tinha posto o mesmo traje de gala do ano anterior. Quando me viu, empalideceu, como tinha empalidecido, poucas horas antes, no meio do caminho, e me disse, com voz abafada:

Deixou-me sozinho, aniquilado por este único e embrutecedor pensamento: "O capitão havia se casado tal como estava!" E, quase em seguida, ouvi um ruído no vestíbulo, aquele curioso rumor de cuí... cuí... que não tinha conseguido explicar no ano anterior, e que havia acompanhado a dama da lanterna até a porta do jardim... Aquele ruído foi seguido pela aparição de quatro carrinhos, ocupados por quatro aleijados com braços e sem pernas, que me olhavam estupefactos. Todos vestiam traje de etiqueta, muito corretos, com peitilhos luzidios. Um deles usava lentes de ouro, o outro – um velho - óculos, o terceiro monóculo e o quarto contentava-se com seus olhos, de olhar sagaz e inteligente, para me contemplar com expressão de contrariedade. Contudo, os quatro me saudaram, com seus ganchos, e perguntaram-me pelo capitão Geraldo. Respondi-lhes que Geraldo tinha ido vestir seu smoking e que a Sra. Beauvisage estava bem. Quando me permiti falar, com tanta intimidade, da Sra. Beauvisage, surpreendi alguns olhares que se cruzavam e que me pareciam um tanto escarninhos.

E os outros começaram a sorrir, com uma expressão pertinente ao extremo. Depois falaram os quatro, quase ao mesmo tempo.

- Queira desculpar – disseram – queira desculpar! Oh! É natural que nos choque vê-lo em casa deste bizarro capitão que, no dia do seu casamento, jurou retirar-se com sua mulher para o campo e não ver ninguém... ninguém a não ser seus amigos excepcionais... Compreende?... Quando um homem está tão estropiado como o capitão quis ficar, e se casa com uma pequena tão linda... é muito natural! Muito natural!... Mas, enfim, se encontrou no mundo um homem decente que não seja aleijado, tanto melhor, tanto melhor...

E repetiram: "Tanto melhor!... oh! Tanto melhor!... parabéns!"

Céus, que estranhos eram aqueles gnomos! Eu os fitava sem dizer uma palavra... Chegaram outros, de dois em dois... de três em três... e, por fim, um só... e todos me encaravam com surpresa, inquietação ou ironia...

Senti-me enlouquecer diante de tanto aleijão. Porque, em realidade, se começava a compreender a maior parte dos fenômenos que tanto me haviam impressionado, e se os aleijados explicavam, com sua presença, muita coisa, em compensação, a presença dos aleijados não se explicava, como tampouco se explicava a monstruosa união daquela formosa criatura com aquele horrível farrapo humano.

Claro está que naquele momento compreendia eu que os diminutos troncos ambulantes deviam passar, necessariamente, inadvertidos para mim, ao atravessar a rua do jardinzinho marginada de plantas de verbena, e ao percorrer o caminho encaixado entre duas cercas; porém, francamente, quando no ano anterior dizia a mim mesmo que era impossível uma pessoa atravessar aqueles caminhos sem que eu a visse, não podia pensar senão numa pessoa que os atravessasse sobre suas duas pernas...

Até o trinco da porta não tinha mais mistério para mim, e, com os olhos do espírito, via naquele instante o invisível gancho que o fazia girar...

Aquele ruído cuí... cuí... não era outro senão o das rodinhas, mal lubrificadas, dos carrinhos daqueles fenômenos. E, por último, aquele estranho ribombo de trovão, aquele rufar de tambor de madeira não era senão o estrépito que armavam todos aqueles carrinhos e todos aqueles ganchos ao bater no chão, à hora em que, depois de excelente repasto, os senhores aleijados dançavam...

Sim, sim, tudo se explicava... mas demasiado compreendia eu, ao contemplar os estranhos olhos ardentes ao escutar aquele singular ruído dos ganchos, que ainda restava por explicar algo terrível, e que o que até então havia visto, e que tanto me tinha chocado, era o de menor...

Nisto chegou a Sra. Beauvisage, seguida por seu marido. O casal foi recebido com gritos de alegria. Os ganchos obsequiaram-no com um rufar infernal. Eu estava aturdido... Depois me apresentaram. Havia aleijados por todos os cantos... em cima da mesa, nas cadeiras, nas banquetas, no lugar que costumavam ocupar os vasos desalojados, num consolo... um deles permanecia, como um buda em seu nicho, encarapitado no mármore duma prateleira... E todos me estenderam seus ganchos, muito cortesmente. A maior parte deles pareciam pessoas distintas... com títulos e prefixos... mas depois soube que me tinham dado nomes falsos, por motivos fáceis de compreender. Lord Wilmore era indubitavelmente o que melhor aspecto mostrava, com sua linda barba dourada e seu belo bigode, que acariciava incessantemente com seu gancho. Não saltava de móvel em móvel como os demais, e não parecia revolutear, como um morcego gigantesco.

Chegou o doutor.

Também era aleijado, mas conservava seus dois braços!

Ofereceu um à Sra. Beauvisage para ir até a sala de jantar. Quero dizer que a dona da casa lhe tomou a ponta dos dedos.

A comida estava servida naquela sala, cujas janelas se mantinham hermeticamente fechadas. Grandes candelabros iluminavam uma mesa cheia de flores e enfeites. Não havia uma única fruta. Os doze aleijados saltaram imediatamente para suas cadeiras e começaram a "bicar" glutonamente nas travessas com seus ganchos. Ah! Não ofereciam um espetáculo agradável, e até me causou verdadeiro assombro ver a voracidade com que comiam aqueles homens-troncos que, poucos momentos antes pareciam tão bem educados.

Depois se acalmaram repentinamente; ficaram imóveis os ganchos e adverti que, entre os comensais, se estabelecia o que de ordinário se qualifica de "silêncio penoso".

Todos os olhos se voltaram para a Sra. Beauvisage, ao lado da qual me tinha colocado o capitão, e vi que a dama inclinava a cabeça sobre seu prato, com expressão perturbada. Então meu amigo Geraldo disse, batendo com ostentação seus ganchos um contra o outro:

E voltando-se para mim, enquanto levantava pela asa o copo que tinha diante de si, ajuntou:

E todos levantaram seus copos tomando-os pelas asas com a extremidade de seus ganchos. Aqueles copos balançavam sobre a mesa de maneira mais estranha. Meu anfitrião continuou:

Então – prosseguiu o capitão Miguel, soltando profundo suspiro – então meu antigo companheiro explicou-me que, noutro tempo, viajando na Dafne, um vapor que navegava pelos mares do Extremo Oriente, haviam naufragado quantos naquela sala se encontravam reunidos; que a tripulação se salvou nos botes e que aqueles desgraçados se viram abandonados numa balsa. Uma pequena belíssima, a Srta. Madje, que tinha perdido um parente na catástrofe, foi igualmente recolhida na balsa. Em cima daquelas tábuas viram-se reunidas treze pessoas, que ao cabo de três dias tinham esgotado todas as provisões de boca, e aos oito dias morriam de fome. Foi então que, como sucede na lenda da Nau Catarineta, botaram sorte para ver "a quem havia de se comer"... Senhores – ajuntou o capitão Miguel muito sério – estas coisas talvez sucedam com mais freqüência do que se conta, porque o mar deve ter presenciado, mais de uma vez, estas "comezainas"...

Assim, pois, iam botar sortes na balsa da Dafne, quando se ouviu uma voz, a do doutor: "Senhora e senhores – dizia o médico – no naufrágio que lhes arrebatou quanto possuíam, eu conservei meu estojo de cirurgia e minhas pinças hemostáticas. Vejam o que vou propor. É inútil que um de nós se exponha a ser comido inteiro. Sorteiem-se, primeiramente, os braços ou as pernas, à escolha... e amanhã veremos como se apresenta o dia; talvez apareça uma vela no horizonte!..."

Ao chegar o capitão Miguel a este ponto de seu relato, os quatro velhos lobos do mar, que até então não o tinham interrompido, exclamaram:

O capitão Miguel deu um soco tão forte na mesa que os copos saltaram, como bolas de borracha.

E como os outros quatro se entreolharam sorrindo, o capitão Miguel empalideceu, ao ver que os outros, compreendendo que o caso se ia azedando, baixaram a cabeça...

Ao ouvir isto, senti que todo o sangue me fugia do coração – murmurou surdamente o capitão Miguel – porque recordei que no ano anterior, por aquela mesma época, um pedreiro tinha morrido, ao cair dum telhado, no bairro do Arsenal, e que seu corpo fora encontrado... com um braço de menos!

Então... oh! Então não tive mais remédio senão pensar no papel que devia ter representado minha bela vizinha naquele drama culinário horrível... voltei os olhos para a Sra. Beauvisage e observei que acabava de calçar luvas, umas luvas que lhe cobriam todo o braço... e que, alem disso, tinha colocado apressadamente sobre os ombros uma capa, que os ocultava por completo. Meu vizinho da direita, que era o médico, e o único entre todos aqueles homens-troncos que possuía mãos, tinha calçado também suas luvas.

Em vez de procurar explicar-me, embora sem o conseguir, a razão desta nova extravagância, teria feito melhor seguindo o conselho de não permanecer muito tempo naquela casa, conselho que me tinha dado a Sra. Beauvisage ao começar o maldito sarau, conselho que, além disso, não se repetia...

Após me ter demonstrado, na primeira parte daquele estranho ágape, um interesse em que advertia (não sabia por quê) um pouco de compaixão, a Sra. Beauvisage evitava olhar-me, e tomava parte, o que muito me entristeceu, na conversa mais espantosa que eu podia ter ouvido em minha vida. Aqueles homenzinhos, exaltadíssimos, fazendo ressoar seus ganchos e batendo seus copos uns contra os outros, dirigiam uns aos outros amargas recriminações, ou se felicitavam vivamente pelo "prazer que tinham". Horror! Lord Wilmore, que tão corretamente se conduzira até então, esteve a ponto de ir às vias de fato com o aleijado de monóculo, porque este o havia achado intrometido, e a dona da casa teve necessidade de acalmá-los, replicando ao de monóculo – que na época do naufrágio devia ser um adolescente – que "tampouco era muito agradável tropeçar com uma rês demasiado jovem".

Pensei que o capitão ia atirar-se em cima dele, tanto mais quanto os outros três pareciam sentir uma alegria completamente íntima, e deixavam ouvir uns imperceptíveis cacarejos demasiado estranhos.

A custo pôde dominar-se o excelente capitão.

Depois de soprar como uma foca, disse ao imprudente Dorat:

Os aleijados tinham bebido muito. Alguns se haviam encarapitado na mesa, e me rodeavam fitando meus braços de tal maneira que, sobressaltado, acabei por escondê-los da melhor forma possível, metendo as mãos nos bolsos...

Então compreendi – pensamento aterrador – por que os que ainda tinham braços e mãos não os mostravam: compreendi-o, pela ferocidade repentina de certos olhares... E naquele mesmo instante, como para minha desgraça, sentisse necessidade de assoar-me, e fizesse um movimento instintivo que descobriu, sob os punhos de minha camisa, a brancura de minha pele, três ganchos terríveis caíram imediatamente sobre meu pulso, cravando-se-me na carne. Soltei um grito lancinante...

A Sra. Beauvisage não estava ali... Mas também devia ter participado do festim, porque ouvi um deles perguntar a Geraldo: "Que tal lhe pareceu sua parte?"... "Muito boa, muito boa, já acabei, já acabei!" Aqueles horríveis monstros compreenderam, sem dúvida, uma vez satisfeita a paixão, a gravidade do delito... Fugiram e a Sra. Beauvisage com eles, como é natural... Ao desaparecer, deixaram as portas abertas... mas ninguém veio pôr-me em liberdade antes de passados quatro dias... quando já estava semimorto de fome...

Porque os miseráveis não me tinham deixado senão os ossos!