Sátira terceira
Horácio
O Amigo
Ensina que devemos ser indulgentes com os amigos e não considerar como faltas imperdoáveis
os seus menores defeitos.

(...)

Não odiemos, sequer, do amigo o vício
(Se tem algum) como usa o pai co’o filho:
Se é torto, diz q tem olhos petos,
Se anão é, como Sísifo abortivo,
Pequenino lhe chama, e chama zambro
O que é de todo trôpego e aleijado:
Se para dentro os pés disformes volta,
Dirá que nos artelhos mal se estriba.
Assim co’o amigo proceder devemos:
É mesquinho? Econômico se diga.
É fanfarrão, vaidoso? Prazenteiro
Deseja parecer. Em demasia
É livre e rude? Franco e bravo o julga.
É ardente, arremessado? Activo, o chama.
Isto, se não me engano, amigos ganha,
E os ganhados conversa. Mas diverso
É nosso proceder – desfiguramos
Té a mesma virtude – e assim cobrimos
De torpe ornato um vaso puro e belo.
Vives com homem de honra e probidade?
Dirás que tem rasteiros sentimentos.
É lento e refletido? Alcunha-o logo
De crasso e sotrancão. Estoutro evita
Em ciladas cair, e nunca o lado
A malícia descobre, bem q o cinja
A negra inveja, a atroz maledicência:
E em vez de circunspecto e cauteloso,
Astuto e refolhado o apelidamos.
Se alguém, mais simples, te interrompe acaso
Com distrações e práticas insulsas
Enquanto lês, ou tácito meditas:
(Como eu, caro Mecenas, muitas vezes
Bem poderia praticar contigo)
Um sandeu, desde logo, é proclamado!
Ah! Que, sem o pensar, decreto injusto
Contra nós sancionamos! Sem defeitos
Ninguém nasceu jamais: o ótimo é sempre
O que menos comporta. O doce amigo
Vícios, virtudes como é justo pese,
E se estas montam mais, com isso folgue,
Se quer amado ser. Se assim pratica,
Em balanças iguais será pesado.
Queres que esses lobinhos não enojem
O amigo teu? Desculpa-lhe as verrugas:
Justo é que outorgues o perdão que imploras.
E se o louco da cólera o defeito,
E outros mais, que o coração lhe empolgam,
Inteiramente exterminar não pode,
Por que os seus pesos, e bitola exata,
Não emprega a razão, impondo ao vício
Proporcionada pena que o refreie?
Se alguém mandasse pôr na cruz o escravo,
Porque engolira do pescado o resto,
Coa morna salsa ao retirar dos pratos;
Mais louco entre avisados se diria
Que o próprio Labeão! Quão mor demência,
E mor erro não é, por tênue falta
Odiar, fugir o amigo, como evita
De ruzão encontrar esse que os juros,
Nem capital, de parte alguma arranja,
Para as tristes e próximas calendas,
E que há-de ouvir-lhe as bárbaras histórias,
Como um cativo, cabisbaixo e mudo?
Outro, ébrio um pouco, te enxovalha o leito,
Ou da mesa te arroja uma escudela,
Surrada pelas mãos do velho Evandro:
E por isso, ou porque faminto apanha
O franguinho que já tinha em meu prato,
Ser-me-á menos jucundo? E que faria
Se um furto cometera, se à palavra
Me faltasse, ou traísse os meus segredos?
Esses que as faltas em geral nivelam,
Na praxe encontram graves embaraços.
Opõem-se-lhe o bom senso, os bons costumes
E mesmo a conveniência, quase origem
Da justiça e equidade. Quando os homens
Das entranhas da terra pularam,
(Rebanho mudo e horrendo!) à unha, ao soco,
Depois com varapaus, e enfim com armas
Que o uso introduziu, se disputavam
A boleta e o covil: enfim palavras,
E nomes, com que a mente declarassem,
Chegaram a inventar: da bruta guerra
Desistiram de então, e principiaram
Cidades a murar: leis instituíram
Contra o ladrão violento, ou formigueiro,
E contra os adultérios, pois que inda antes
Que Helena seduzisse o frígio moço,
O amor foi causa de sangrentas guerras.
Mas esses, que pleiteando incerta Vênus,
(Como touros rivais na flórea quadra)
Dos brutos à maneira, às mãos caíram
Daquele que em vigor se avantajava,
Faleceram de obscura e ignota morte.
Cumpre, enfim confessar, se recorrermos
Às priscas eras, e aos anais do mundo,
Que o temor da injustiça as leis criara;
Nem discernir a natureza pode
O que é justo do injusto, como extrema
O bem do mal, o útil do nocivo.
A razão não dirá que um mesmo crime
Comete o que devasta a horta alheia,
E os que roubam de noite as sacras aras.
Deve pois norma haver que justa pena
Aos delitos rogue – e não golpeies
O que de açoites módicos é digno.
Não que eu tema que à férula castigues
O que merece rígido azorrague;
Que o roubo de estrada ao ferto iguala,
Por certo cortará coa mesma foice
Leve e grave – se acaso o seu regime
Os homens lhe outorgarem – Mas se o sábio
É tudo neste mundo, belo e rico,
Bom sapateiro, Rei... por que desejas
O que já tens em ti! – Já não te lembra
O que nos diz o preceptor Crisipo!
O sábio nunca fez chapins e alparcas,
No entanto é sapateiro consumado.
De que arte? – Como Hermógenes calado
De ser não deixa um músico excelente;
Como era sapateiro o astuto Alfeno
Inda depois de ter fechado a loja,
E haver deposto os utensis do ofício
Eis como o sábio é artífice perfeito
Em qualquer arte – e Rei dizê-lo podes.
Mas o travesso rapazio em chusma
A barba te arrepela, e se a bordoada
O não dispersas, te circunda, aperta,
E hás-de, infeliz! arrebentar, ladrando,
Bem que sejas o Rei maior do mundo!
Para não ser prolixo – enquanto ao banho
Tu vais por um ceitil, ninguém te segue,
Como Rei, a não ser Crispino, o parvo.
Se eu cair em algum desmancho, incauto,
Desculpa encontrarei no terno amigo:
Perdoar-lhe-ei, bom grado, em câmbio as faltas;
E mais que tu, nessa alta dignidade,
Mero particular, serei ditoso.