O demônio da tanoaria
Arthur Conan Doyle
Não foi coisa fácil trazer o "Gamecock" até a ilha, porque o rio arrastara tanta lama que os bancos se estendiam muitas milhas pelo Atlântico a dentro. A costa ainda mal se via quando a primeira linha branca de arrebentação nos preveniu do perigo, e desse ponto em diante avançamos com muito cuidado com a vela grande e a bujarrona, conservando a arrebentação da água bem para a esquerda, como estava indicado na carta. Mais de uma vez a quilha tocou na areia (estávamos calando um pouco mais de seis pés, naquela ocasião), mas tivemos sempre jeito e porte para passar. Finalmente, a água encheu-se rapidamente de bancos, mas tinham mandado uma canoa da feitoria e o piloto Krooboy levou-nos até uma distância de duzentas jardas da ilha. Aí lançamos ferro, porque os gestos do negro indicavam que não podíamos esperar avançar mais. O azul do mar mudara para o castanho do rio e mesmo ao abrigo da ilha a corrente cantava e remoinhava em volta da nossa proa. A maré parecia estar cheia porque passava acima das raízes das palmeiras e, por todos os lados, sobre sua superfície barrenta e oleosa podíamos ver pedaços de madeira e destroços de toda espécie que tinham sido arrastados pela enxurrada.
Quando me certifiquei de que estávamos firmes em nossa ancoragem, pensei que era melhor começar a tomar água imediatamente, porque o lugar parecia inquinado de febres. O rio denso, os bancos lamacentos e lodosos, o verde brilhante e venenoso da mata, o vapor úmido no ar, eram outros tantos sinais para quem soubesse lê-os. Mandei portanto arriar o escaler com dois grandes odres, que seriam suficientes para durar até chegarmos a São Paulo de Loanda. Quanto a mim, tomei o bote pequeno e remei para a ilha, porque podia ver a bandeira inglesa flutuando acima das palmeiras para marcar a posição do entreposto comercial de Armitage & Wilson.
Depois de passar para além do pequeno bosque pude ver o lugar, uma construção baixa, comprida, caiada, com profunda varanda na frente e imensas pilhas de barris de óleo de palma de ambos os lados. Uma fila de caíques e canoas estava amarrada ao longo da praia e um simples pontão se projetava pelo rio. Dois homens de roupa branca, com faixas vermelhas em volta da cintura, estavam esperando na extremidade para me receber. Um era um camarada grande e corpulento, de barba grisalha. O outro era magro e alto, de rosto pálido, enrugado, meio escondido sob um grande chapéu em feitio de cogumelo.
Estas apresentações e explicações tomaram o tempo durante o qual os meus dois Krooboys amarraram o caíque. Então caminhei pelo pontão com um dos meus novos conhecidos de cada lado, ambos crivando-me de perguntas porque não viam um homem branco havia meses.
Não há nada mais interessante do que a maneira pela qual aqueles marcos avançados da civilização conseguem destilar bom humor da situação desolada em que se encontram, e mostram cara não só calma como alegre às contingências que a vida possa trazer. Por toda a parte desde a Serra Leoa para baixo, encontrei os mesmos pântanos pestilentos, as mesmas comunidades isoladas, torturadas pelas febres, e os mesmos maus gracejos. Há qualquer coisa, que toca as raias do divino naquela forca do homem de erguer-se acima das circunstancias e usar a inteligência para zombar das misérias do corpo.
O sol já descera abaixo da linha de palmeiras, e a grande abóbada do céu sobre as nossas cabeças era como o interior de uma calote imensa, irisada de cor-de-rosa claro e delicadas nuanças. Ninguém que não tenha vivido numa terra onde o peso e o calor de um guardanapo se tornam intoleráveis sobre os joelhos, pode imaginar o abençoado alívio que o frescor das tardes traz consigo. Naquele ar mais leve e mais puro o doutor e eu caminhamos em volta da pequena ilha, ele apontando os armazéns e explicando a rotina do serviço.
O lugar que o doutor indicava era uma praia em declive, literalmente coberta pelos destroços arrastados pela corrente. Em cada extremidade havia uma ponta curva, formando uma espécie de quebra-mar natural, de modo que havia uma pequena baía entre as duas. Esta estava cheia de vegetação flutuante, com um único grande tronco de árvore atravessado no meio, e de encontro ao qual a correnteza vinha quebrar-se.
Conduziu-me até um comprido edifício, com enorme quantidade de aduelas de barris e aros de ferro espalhados lá dentro.
Olhei em volta, para o alto do telhado de zinco corrugado, para as paredes de madeiras caiadas e para o chão de terra batida. A um canto havia um colchão e um cobertor.
Olhei e vi longos tentáculos de vapor branco subindo em espirais de entre o denso matagal verde e arrastando-se em nossa direção por sobre a larga superfície crespa do rio barrento. Ao mesmo tempo o ar se tornou de súbito úmido e frio.
Interessava-me muito, porque havia qualquer coisa de sério e contrafeito nas suas maneiras enquanto ele estava parado na tanoaria deserta, que me excitava fortemente a imaginação. Era um homem grande, resoluto, aquele doutor, e no entanto vislumbrei-lhe um curioso brilho nos olhos quando os passeava em sua volta – uma expressão que eu não descreveria como sendo de medo, mas antes como a de um homem que está alerta e em guarda.
Não fizemos qualquer outra alusão ao caso durante o excelente jantar que fora preparado em minha honra. Parecia que, mal a vela branca do "Gamecock" surgira na extremidade do cabo Lopez, aqueles hospitaleiros camaradas tinham começado a preparar a famosa "panela-de-pimenta" – que é o ardente cozido peculiar à costa oeste – a cozinhar os inhames e as batatas doces. Servimo-nos de um jantar nativo tão bom quanto se poderia desejar, servido por um elegante criadinho da Serra Leoa. Estava já observando comigo mesmo que ele pelo menos não tomara parte na conversa geral quando, tendo colocado a sobremesa e o vinho em cima da mesa, ele levou a mão ao turbante.
Vi a luta entre o medo e o dever no rosto do negro africano. Sua pele tomara aquele tom lívido-arroxeado que toma o lugar da palidez nos pretos, e seus olhos giraram furtivamente pela sala.
De novo vi a luta desesperada no rosto do negro, e de novo seus receios prevaleceram.
Walker encolheu os ombros.
Era evidente que Walker fora atacado por um desses súbitos e violentos acessos de febre intermitente que são a praga da costa Oeste. Suas faces macilentas estavam vermelhas, os olhos brilhavam com a febre e, de súbito, ali mesmo sentado como estava, começou a bradar uma canção com a voz esganiçada do delírio.
Quando voltávamos da outra extremidade do pontão, ficamos espantados com o aspecto da noite. Enorme montanha de nuvens cor de chumbo elevara-se do lado da terra, e vento vinha daquela direção em pequenas baforadas quentes que batiam nos nossos rostos como as baforadas de uma fornalha aberta. Sob o pontão o rio fazia redemoinhos e escachoava, atirando pequenos salpicos de espuma branca por cima das pranchas.
O doente estava mergulhado em profundo torpor e deixamos algumas limas espremidas em um copo ao lado dele, para o caso que acordasse com a sede da febre. Depois nos encaminhamos através da escuridão insólita lançada pelas nuvens ameaçadoras. O rio subira tanto que a pequena baía que descrevi, e que ficava na extremidade da ilha, estava quase obliterada pela submersão da península lateral. A grande balsa de detritos de madeira com a enorme árvore escura no meio estava derivando para cima e para baixo na corrente engrossada.
À luz de nossa única lanterna, o grande salão solitário parecia muito vazio e triste. Salvo as pilhas de aduelas e montes de aros, não havia absolutamente nada nele, exceto o colchão preparado a um canto para o doutor. Fizemos dois assentos e u’a mesa com as aduelas e iniciamos, juntos, uma longa vigília. Severall trouxera um revólver para mim e estava ele próprio armado com uma espingarda de caça de dois canos. Carregou as armas e deixou-as ao alcance da mão. O pequeno círculo de luz e as sombras negras que nos envolviam eram tão melancólicas que ele foi até a casa e trouxe duas velas. Um dos lados da tanoaria era, porém, rasgado por várias janelas, e foi somente protegendo as nossas luzes com o auxilio de aduelas que conseguimos mante-las acesas.
O doutor, que parecia ser um homem com nervos de ferro, dedicara-se à leitura de um livro, mas eu observei que de vez em quando o pousava sobre os joelhos e passeava um olhar atento à sua volta. Pelo meu lado, embora tentasse uma ou duas vezes ler, achei impossível concentrar os pensamentos no livro. Voltavam sempre a vaguear por aquele grande salão vazio e silencioso e a prender-se naquele sinistro mistério que o envolvia. Torturei o cérebro procurando qualquer teoria possível que pudesse explicar o desaparecimento daqueles dois homens. Havia o fato positivo que se tinham sumido e nem o menor ponto de referência de como nem para onde. E ali estávamos nós, esperando no mesmo lugar – esperando sem a menor idéia sobre aquilo que esperávamos. Tivera razão em dizer que não era empresa para um só homem. Já era bastante excitante naquelas condições, porém for
ça alguma no mundo me teria feito ficar ali sem um companheiro.Que noite infindável e tediosa aquela! Lá fora ouvíamos o murmúrio e rumorejo do grande rio e o soluçar do vento em ascensão. Lá dentro, salvo a nossa respiração, o virar das páginas pelo doutor e o zumbido agudo e fino de algum ocasional mosquito, havia um silêncio pesado. Em certo momento senti o coração subir-me à boca ao mesmo tempo que o livro de Severall caía ao chão e ele se punha em pé de um pulo com os olhos fitos em uma das janelas.
E então, de súbito, nossos pensamentos foram desviados em outra direção, pelo desabar da tempestade. Um relâmpago encandeador foi seguido por um trovão que abalou o prédio. Mais uma vez e mais outra vinha o vívido clarão e o estrondo de uma peça de artilharia. E então desabou a chuva tropical, retinindo e roncando no telheiro de zinco corrugado da tanoaria. O vasto espaço oco ressoava como um grande tambor. Da escuridão ergueu-se estranha mistura de ruídos, um gorgolejar, respingar, pingar, borbulhar, escoar, gotejar – todos os sons líquidos que a natureza pode produzir, desde o desabar e cantar da chuva até ao surdo escachoeirar do rio. Hora após hora o tumulto se tornou mais forte e mais contínuo.
Uma luz cinzenta ia invadindo a tanoaria e o dia raiou pouco depois. A chuva estiara, mas o rio cor de café rugia como uma catarata. Sua força me fez recear pela ancoragem do "Gamecock".
Sentia-me enregelado e deprimido, e a sugestão foi bem acolhida. Deixamos a agourenta tanoaria com seu mistério ainda por desvendar e patinhamos pela lama até a casa.
Deixou-me, mas voltou logo em seguida com uma cara assombrada.
Aquelas palavras deram-me um calafrio de terror. Fiquei parado com a lâmpada na mão, olhando para ele.
Segui-o sem uma palavra e a primeira coisa que vi quando entrei no quarto foi o próprio Walker deitado na cama, com o pijama de flanela cinza que eu ajuda a vestir-lhe na véspera.
O doutor estava terrivelmente agitado. Suas mãos tremiam como folhas ao vento.
Lancei um olhar para baixo e um grito de horror escapou-me dos lábios. Um dos pés estava não somente deslocado, mas torcido completamente na mais grotesca contorção.
Severall pousara a mão sobre o peito do morto.
Coloquei a minha mão no mesmo lugar. Não houve resistência. O corpo estava absolutamente fofo e mole. Era como apalpar um boneco de serragem.
O velho Patterson, o homem mais antigo da tripulação, e calmo como as pirâmides, estivera de quarto à popa com um croque para afastar os troncos flutuantes que desciam arrastados pela correnteza. Agora estava de cócoras, com os olhos esgazeados olhando para a frente e o dedo indicador agitando-se furiosamente no ar.
E no mesmo instante vimo-la.
Um enorme tronco de árvore preto vinha descendo rio abaixo, com a parte superior apenas lambida pelas águas. E na frente dele – cerca de três pés a frente – arqueando-se para cima como a figura de proa de um navio, via-se uma cabeça terrível, balançando devagar de um lado para o outro. Era achatada, malévola, do tamanho de um pequeno barril de cerveja, cor de fungo desbotada, mas o pescoço que a sustentava era mosqueado de amarelo e preto. Enquanto passava ao longo do costado do Gamecock arrastada no torvelinho das águas, vi duas imensas roscas distenderem-se de dentro de um grande buraco no tronco, e a horrenda cabeça ergueu-se de súbito à altura de oito ou dez pés, fitando o iate com olhos sombrios, cobertos de escamas.
Pensei nas histórias que ouvira ao longo de toda a costa sobre os monstruosos constritores do interior, do apetite periódico, e os efeitos assassinos de seu aperto mortal. Então, tudo tomou forma no meu espírito. Houvera uma inundação na semana anterior. Trouxera rio abaixo aquele enorme tronco com seu horrendo ocupante. Quem sabe de que distante floresta tropical teria vindo? Ficara detido na pequena baía a leste da ilha. A tanoaria era a construção mais próxima. Duas vezes, com a volta do apetite periódico, carregara um vigia. Nessa noite voltara sem dúvida, quando Severall julgou ver qualquer coisa movendo-se na janela, mas as nossas luzes tinham-na afastado. Seguira para diante e matara o pobre Walker.