Depois foi a vez do ourives. Ao cabo de certo tempo, também este sentiu sono e procurou em que se ocupar. Então seus olhos encontraram a donzela de pau talhada pelo carpinteiro. Admirou a arte com que estava feita e, para não ceder à sonolência, também deu provas de sua habilidade, fabricando para a estátua brincos, braceletes e outros adornos femininos, com os quais a enfeitou maravilhosamente.
Terminada a vigília do ourives, o alfaiate, por seu turno, ao
despertar, avistou, com forte surpresa, o lindo figurino, e exclamou:
Eu também tenho de mostrar a minha arte.
E logo fez um encantador vestido de festa à deliciosa estatura da donzela e vestiu-a da cabeça aos pés Quem a tivesse visto sem saber que era apenas uma figura esculpida, toma-la-ia por um ser vivo, tão parecido estava com um espírito encarnado.
Quando a vigília do alfaiate chegou ao fim, , ele acordou o monge
e foi deitar-se. Mal o monge abriu os olhos, viu a formosa figura Teve
a impressão de um viandante a cujos olhos, em meio as trevas noturnas,
de repente rebrilha uma luz - e aproxima-se dela. Que viu? Uma linda
figura - de tal formosura - que nem ascetas -e anacoretas - a deixariam
de adorar; - uma bela donzela - sem-par; - suas sobrancelhas, um oratório,
para o amante -suplicante - rezar; - os rubis dos lábios numa tez
de marfim - prometiam prazeres sem fim. - logo o monge os braços
alçou. -implorando a Quem as almas criou:
O Deus todo-poderoso, - que do seio do nada brumoso -para os campos
floridos do ser - arrancaste o homem e a mulher,
tu, só tu, tens o poder - de fazer brotar do córtice
duro -fruto doce, fofo, maduro; - ó Deus, demonstra-me tua graça,
-nao me precipites na desgraça, -- ante os meus companheiros
não me humilhe; eu te invoco, - empresta alma a este corpo oco.
-a fim de que goze da existência - exaltando a tua clemência.
Assim rezava com todo fervor. Como fosse homem de coração puro, o Senhor ouviu-lhe a prece. Com sua inesgotável mi-sericórdia, o Eterno presenteou a estátua com uma alma, e man-dou-a viver. Ela se tornou uma linda donzela, cola a vida li-gada a uma brilhante estrela; - começou a andar, - a se balancear, - como os ciprestes oscilam no ar - e sem demora se pôs a falar, - e tudo o que dizia era gaio - como a fala de um papagaio.
Ao chegar da aurora e, com ela, do Sol, delicia do mundo, as olhos dos quatro viandantes caíram sobre o ídolo arrebatador cha-mado à vida durante a noite. Apenas viram a esplêndida mulher, - uma louca paixão lhes invadiu o ser, - os anéis de seus ca-belos prenderam-nos em cadeias. - e feitos moscas ao redor e candeias, voaram em torno dela, dementes, - e de paixão doentes - os quatro começaram a brigar.
Sou eu - disse o carpinteiro - de sua vida o autor verdadeiro - Meu direito a vós outros vence; - a mim, só a mim ela pertence
Porém o ourives falou assim:
Não lhe dei brincos, braceletes, enfim? Isso, como todos devei
saber, - é metade da alma de uma mulher. Ora, se tanto fiz por ela,
claro que é minha esta donzela.
Disse o alfaiate, por sua vez:
Despesas com da minha bolsa também fez; - vesti-a seda e brocado,
- tomando o seu encanto perfeito e acabado - comunicando-lhe um brilho
tal - que acendeu nela a chama vital. Portanto, sou eu o sou dono, - e
a ninguém a abandono.
Mas o monge exclamou:
Não! - Tudo o que disseste é vão. Então
esqueces me sua vida é fruto de minhas preces? - Foi a mim que deu
o Supremo Juízo, - como antegozo das huris do Paraíso - Para
mim a requisito; - meu direito é manifesto!.
Em poucas palavras. não encontraram outra saída a não ser si meter suas reivindicações à decisão de um tribunal; e iam-se caminhar ao mais próximo, quando aparece diante deles um viandante vestido de pano de chita. Logo os quatro resolvem fazê-lo árbitro de sua divergência o aceitar qualquer sentença ele pronunciasse. Chamaram-no, pois. e contaram-lhe minuciosamente todo o sucedido. Mas logo o daroês viu a linda donzela - apaixonou-se por ela, - e, como flauta plangente, entrou a gemer de repente, - refletiu uni momento, e, para curar o seu próprio tormento, assim falou aos quatro viajantes:
- Ó muçulmanos que palavras estultas acabais de pronunciar! Não temeis o Todo-Poderoso ao cometer tamanho crime querendo-me roubar minha legítima esposa? Um de vós até ousa pretennder havê-la talhado na madeira; outro ter pronunciado uma prece por ela. Dizei, afinal, algo de razoável, algo de possível segundo a lei divina! Esta é a minha mulher e as vestes e os objetos que ela usa, fui eu que mandei fazê-los. Alguns dias atrás, houve entre nós uma briga sem importância; aborrecida com isso, minha mulher deixou a casa esta noite. O desejo de encontrá-la fez-me ir à procura dela. Graças a Deus consegui encontrá-la, efetivamente. Cuidai vós outros pois, de não vos tonardes ridículos com conversas, destituídas de qualquer fundamento.
Assim o daroês, em vez de resolver a contenda, sobrepujou as reivindicações dos quatro viajantes, e então foram cinco a pre-tender cada um estar com razão contra os demais. Em discussões e brigas chegaram a uma cidade, e sem demora se dirigiram ao chefe de polícia para expor o seu caso. Mal o chefe de policia viu a jovem, apaixonou-se por ela com veemência mil vezes maior do que a dos cinco forasteiros, e, no intuito de obtê-la para si investiu deste modo contra eles:
- Homens pérfidos, esta criatura era mulher de irmão mais
velho. Este foi morto por ladrões, que lhe roubaram a esposa. Mas,
graças a Deus, sangue derramado não se perde e vossos
pés vos conduziram ao laço.
Destarte o chefe de policia terminou sendo um rival mais impe-tuoso
ainda que os outros cinco; mandou citá-los sem tardança perante
a justiça e ele mesmo os acompanhou ao cádi. Cada um se esforçava
por explicar sua pretensão àquele respeitável persona-gem,
quando ele de súbito olhou para o rosto da mulher, e
Quando o cádi viu ante si essa criatura, sentiu-se presa do desejo de possuí-la.
- Meus amigos, disse ele, a contenda que estais levantando é nula. Esta linda mulher é uma escrava crescida em minha casa e tratada desde criança como se fora minha filha. Seduzida por homens maus, abandonou-me, levando as jóias e as vestes com que a vedes. Graças sejam dadas ao Altíssimo que ma restitui mercê de vossa obsequiosidade. Espero que Deus, que tudo sabe, leve em conta o serviço que me acabais de prestar e vos dê merecido prêmio.
Ao ouvir tais palavras, quatro dos competidores de apartaram, porque sabiam que o cádi lhes poderia infligir humilhações e castigos sem que eles se pudessem defender. Mas o darôes teve coragem para levantar a voz:
- Achas lícito, tu que pretender estar sentado no tapete do Profeta, não resolver uma contenda de muçulmanos ortodoxos segundo a lei sagrada, mas, pelo contrário, levantar tu mesmo uma pretensão, procurando arrebatar-nos esta donzela? Que religião te autoriza semelhante injustiça? Como te atreverás a comparecer amanhã, perante o Criador do mundo?
- Olha, ladrão de estátuas respondeu o cádi, tu que por meios de jejuns encovaste as faces para enganar as gentes; tu que pretender fazer crer que andas curvado pelo temor de Deus, olha o provérbio que diz: Um bom mentiroso deve ter não só excelente memória, mas também uma inteligência penetrante e aguda. Onde a tua inteligência? Querendo contar-nos patranhas, procura, ao menos, dar-lhes uma aparência decente. Será possível fazer um ser humano de um pedaço de madeira? Renuncia a pretensões tão ridículas e vai-te para onde quiseres. Eu felizmente recuperei minha escrava.
Havia no pátio do tribunal alguns cidadãos que assistiam
à disputa. Referindo-se a estes, disse o monge:
- Os cidadãos aqui presentes, como ignoram o verdadeiro estlado
das coisas, devem supor, ó cádi, que a verdade está
contigo Mas nós outros sabemos bem o que aconteceu.Teme pois, a
Deus, e, em respeito ao Santo Profeta, decide o caso segundo a lei sagrada.
O cádi replicou ao monge, o monge por sua vez respondeu ao cádi com as palavras que lhe pareceram mais violentas, e de pronto o diálogo se transformou em veemente discussão.Os sete homens, todos mortalmente apaixonados, preparavam-se para a luta. Porém, os mais razoáveis dos circunstantes deliberaram reconciliá-los e disseram-lhes:
- Muçulmanos, a vossa contenda é um nó in-solúvel, a menos que o Magnífico se digne desatá-lo. Portanto, atendendo ao conselho de um ditado do Profeta que nos foi transmitido:
- Vamos todos juntos ao cemitério; ali vós rezareis e nós pronunciaremos o amém Destarte se pode esperar que Aquele-Que-Tudo-Segura elucide o mistério.
A proposta foi aceita e transportaram-se todos ao cemitério, onde o monge, erguendo os braços ao céu, e com lágrimas nos olhos, pronunciou com o mais intenso fervor, esta oração:
- Ó Fortíssimo, cujo poder não tem lindas, - que os pensamentos mais secretos deslindas -, cuja mente de antemão conhece a nossa prece, - imploramos-te que desates o nó, que nos causa tanto dó e declares bondosamente quem diz a verdade e quem mente.
Quando acabou de pronunciar estas palavras, toda a assembléia exclamou a uma voz:
- Amém!
Nesse instante aconteceu que uma grande árvore, à qual se recostara a linda donzela durante a oração, fendeu-se de súbito, engoliu a donzela, e novamente se fecou, ficando como dantes. Dessa maneira se verificou mais uma ve a verdade da misteriosa sentença: Todas as coisas voltam a sua origem.
Tal desfecho pôs fim a qualquer discussão. Com os olhos
da certeza, todos reconheceram que os quatro viajantes haviam dito a verdade
e os outros homens haviam mentido. Assim a razão dos peregrinos
se manifesta e descmascara-se a fraude infesta. O darôes, o chefe
de polícia e o cádi ali ficaram e quedaram de todos desprezados
e envergonhados.
Mas os quatro peregrinos apaixonados pelo lindo figurino, ficaram
perplexos ao ver a virgem tornar destarte à sua origem.