HISTÓRIA DA DONZELA DE PAU E DE SEUS ADORADORES
Conto popular
ontam os livros do passado – de histórias verdadeiras um bocado. Relatam, entre estas, de um dia quatro homens, um carpinteiro, um ourives, um alfaiate e um monge, empreenderam juntos uma viagem. Depois de terem viajado certo tempo, aconteceu, por deliberação divina, que tiveram de passar a noite numa regiao pouco segura. Temendo ser agredidos por animais ferozes, resolveram que cada um deles, por sua vez, velaria durante algum tempo. O primeiro a velar foi o carpinteiro. Enquanto os outros dormiam, sentiu-se ele invadido de cansaço e, para afugentar o sono, tomou de seus instrumentos. Derrubou uma árvore delgada, pôs-se a talhar a madeira, e acabou formando uma figura de donzela, com a cabeça, a mãos e os pés.

Depois foi a vez do ourives. Ao cabo de certo tempo, também este sentiu sono e procurou em que se ocupar. Então seus olhos encontraram a donzela de pau talhada pelo carpinteiro. Admirou a arte com que estava feita e, para não ceder à sonolência, também deu provas de sua habilidade, fabricando para a estátua brincos, braceletes e outros adornos femininos, com os quais a enfeitou maravilhosamente.

Terminada a vigília do ourives, o alfaiate, por seu turno, ao despertar, avistou, com forte surpresa, o lindo figurino, e exclamou:
Eu também tenho de mostrar a minha arte.

E logo fez um encantador vestido de festa à deliciosa estatura da donzela e vestiu-a da cabeça aos pés Quem a tivesse visto sem saber que era apenas uma figura esculpida, toma-la-ia por um ser vivo, tão parecido estava com um espírito encarnado.

Quando a vigília do alfaiate chegou ao fim, , ele acordou o monge e foi deitar-se. Mal o monge abriu os olhos, viu a formosa figura Teve a impressão de um viandante a cujos olhos, em meio as trevas noturnas, de repente rebrilha uma luz -  e aproxima-se dela. Que viu? Uma linda figura - de tal formosura - que nem ascetas -e anacoretas - a deixariam de adorar; - uma bela – donzela - sem-par; - suas sobrancelhas, um oratório, para o amante -suplicante - rezar; - os rubis dos lábios numa tez de marfim - prometiam prazeres sem fim. - logo o monge os braços alçou. -implorando a Quem as almas criou:
O Deus todo-poderoso, - que do seio do nada brumoso -para os campos floridos do ser - arrancaste o homem e a mulher,
tu, só tu, tens o poder - de fazer brotar do córtice duro -fruto doce, fofo, maduro; - ó Deus, demonstra-me tua graça, -nao me precipites na desgraça,  -- ante os meus companheiros  não me humilhe; eu te invoco, - empresta alma a este corpo oco. -a fim de que goze da existência - exaltando a tua clemência.

Assim rezava com todo fervor. Como fosse homem de coração puro, o Senhor ouviu-lhe a prece. Com sua inesgotável mi-sericórdia, o Eterno presenteou a estátua com uma alma, e man-dou-a viver. Ela se tornou uma linda donzela,   cola a vida li-gada a uma brilhante estrela; - começou a andar, - a se balancear, - como os ciprestes oscilam no ar - e sem demora se pôs a falar, - e tudo o que dizia era gaio - como a fala de um papagaio.

Ao chegar da aurora e, com ela, do Sol, delicia do mundo, as olhos dos quatro viandantes caíram sobre o ídolo arrebatador cha-mado à vida durante a noite. Apenas viram a esplêndida mulher, - uma louca paixão lhes invadiu o ser, - os anéis de seus ca-belos prenderam-nos em cadeias. - e feitos moscas ao redor e candeias,    voaram em torno dela, dementes, - e de paixão doentes - os quatro começaram a brigar.

Sou eu - disse o carpinteiro - de sua vida o autor verdadeiro - Meu direito a vós outros vence; - a mim, só a mim ela pertence

Porém o ourives falou assim:
Não lhe dei brincos, braceletes, enfim? Isso, como todos devei saber, - é metade da alma de uma mulher. Ora, se tanto fiz por ela, claro que é minha esta donzela.

Disse o alfaiate, por sua vez:
Despesas com da minha bolsa também fez; - vesti-a seda e brocado, - tomando o seu encanto perfeito e acabado - comunicando-lhe um brilho tal - que acendeu nela a chama vital. Portanto, sou eu o sou dono, - e a ninguém a abandono.

Mas o monge exclamou:
Não! - Tudo o que disseste é vão. Então esqueces me sua vida é fruto de minhas preces? - Foi a mim que deu o Supremo Juízo, - como antegozo das huris do Paraíso - Para mim a requisito; - meu direito é manifesto!.

Em poucas palavras. não encontraram outra saída a não ser si meter suas reivindicações à decisão de um tribunal; e iam-se caminhar ao mais próximo, quando aparece diante deles um viandante vestido de pano de chita. Logo os quatro resolvem fazê-lo árbitro de sua divergência o aceitar qualquer sentença ele pronunciasse. Chamaram-no, pois. e contaram-lhe minuciosamente todo o sucedido.  Mas logo o daroês  viu a linda donzela - apaixonou-se por ela, - e, como flauta plangente, entrou a gemer de repente, - refletiu uni momento,  e, para curar o seu próprio tormento, assim falou aos quatro viajantes:

- Ó muçulmanos que palavras estultas acabais de pronunciar! Não temeis o  Todo-Poderoso ao cometer tamanho crime  querendo-me roubar minha legítima esposa? Um de vós até ousa pretennder havê-la talhado na madeira; outro ter pronunciado uma prece por ela. Dizei, afinal, algo de razoável, algo de possível segundo a lei divina! Esta é a minha mulher e as vestes e os objetos que ela usa, fui eu que mandei fazê-los. Alguns dias atrás, houve entre nós uma briga sem importância; aborrecida com isso, minha mulher deixou a casa esta noite. O desejo de encontrá-la fez-me ir à  procura dela. Graças a Deus consegui encontrá-la, efetivamente. Cuidai vós outros pois, de não vos tonardes ridículos com conversas, destituídas de qualquer fundamento.

Assim o daroês, em vez de resolver a contenda, sobrepujou as reivindicações dos quatro viajantes, e então foram cinco a pre-tender cada um estar com  razão contra os demais. Em discussões e brigas chegaram a uma cidade, e sem demora se dirigiram ao chefe de polícia para expor o seu caso.  Mal o chefe de policia viu a jovem, apaixonou-se por ela com veemência mil vezes maior do que a dos cinco forasteiros, e, no  intuito de obtê-la para si investiu deste modo contra eles:

- Homens pérfidos, esta criatura era mulher de irmão mais velho. Este foi morto por ladrões, que lhe roubaram a esposa. Mas, graças a Deus, sangue derramado não se perde e vossos  pés vos conduziram ao laço.
Destarte o chefe de policia terminou sendo um rival mais impe-tuoso ainda que os outros cinco; mandou citá-los sem tardança perante a justiça e ele mesmo os acompanhou ao cádi. Cada um se esforçava por explicar sua pretensão àquele respeitável persona-gem, quando ele de súbito olhou para o rosto da mulher, e

Surgiu-lhe ante os olhos formosa menina,
Dos pés a cabeça – graciosa, divina!
Altivo cipreste, perdido deixava,
Enfermo de amores, a quem fitava.

Quando o cádi viu ante si essa criatura, sentiu-se presa do desejo de possuí-la.

- Meus amigos, disse ele, a contenda que estais levantando é nula. Esta linda mulher é uma escrava crescida em minha casa e tratada desde criança como se fora minha filha. Seduzida por homens maus, abandonou-me, levando as jóias e as vestes com que a vedes. Graças sejam dadas ao Altíssimo que ma restitui mercê de vossa obsequiosidade. Espero que Deus, que tudo sabe, leve em conta o serviço que me acabais de prestar e vos dê merecido prêmio.

Ao ouvir tais palavras, quatro dos competidores de apartaram, porque sabiam que o cádi lhes poderia infligir humilhações e castigos sem que eles se pudessem defender. Mas o darôes teve coragem para levantar a voz:

- Achas lícito, tu que pretender estar sentado no tapete do Profeta, não resolver uma contenda de muçulmanos ortodoxos segundo a lei sagrada, mas, pelo contrário, levantar tu mesmo uma pretensão, procurando arrebatar-nos esta donzela? Que religião te autoriza semelhante injustiça? Como te atreverás a comparecer amanhã, perante o Criador do mundo?

- Olha, ladrão de estátuas – respondeu o cádi, tu que por meios de jejuns encovaste as faces para enganar as gentes; tu que pretender fazer crer que andas curvado pelo temor de Deus, olha o provérbio que diz: “Um bom mentiroso deve ter não só excelente memória, mas também  uma inteligência penetrante e aguda.” Onde a tua inteligência? Querendo contar-nos patranhas, procura, ao menos, dar-lhes uma aparência decente. Será possível fazer um ser humano de um pedaço de madeira? Renuncia a pretensões tão ridículas e vai-te para onde quiseres. Eu felizmente recuperei minha escrava.

Havia no pátio do tribunal alguns cidadãos que assistiam à disputa. Referindo-se a estes, disse o monge:
- Os cidadãos aqui presentes, como ignoram o verdadeiro estlado das coisas, devem supor, ó cádi, que a verdade está contigo Mas nós outros sabemos bem o que aconteceu.Teme pois, a Deus, e, em respeito ao Santo Profeta, decide o caso segundo a lei sagrada.

O cádi replicou ao monge, o monge por sua vez respondeu ao cádi com as palavras que lhe pareceram mais violentas, e de pronto o diálogo se transformou em veemente discussão.Os sete homens, todos mortalmente apaixonados, preparavam-se para a luta.  Porém, os mais razoáveis dos circunstantes deliberaram reconciliá-los e disseram-lhes:

- Muçulmanos, a vossa contenda  é um nó in-solúvel, a menos que o Magnífico se digne desatá-lo. Portanto, atendendo ao conselho de um ditado do Profeta que nos foi transmitido:

Se a um caso da vida não sabes achar solução,
Consulta os que dormem seu sono debaixo do chão.

- Vamos todos juntos ao cemitério; ali vós rezareis e nós pronunciaremos o amém Destarte se pode esperar que Aquele-Que-Tudo-Segura elucide o mistério.

A proposta foi aceita e transportaram-se todos ao cemitério, onde o monge, erguendo os braços ao céu, e com lágrimas nos olhos, pronunciou com o mais intenso fervor, esta oração:

- Ó Fortíssimo, cujo poder não tem lindas, - que os pensamentos mais secretos deslindas -, cuja mente de antemão conhece – a nossa prece, - imploramos-te que desates o nó, que nos causa tanto dó – e declares bondosamente – quem diz a verdade e quem mente.

Quando acabou de pronunciar estas palavras, toda a assembléia exclamou a uma voz:

- Amém!

Nesse instante aconteceu que uma grande árvore, à qual se recostara a linda donzela durante a oração, fendeu-se de súbito, engoliu a donzela, e novamente se fecou, ficando como dantes. Dessa maneira se verificou mais uma ve a verdade da misteriosa sentença: “Todas as coisas voltam a sua origem.”

Tal desfecho pôs fim a qualquer discussão. Com os olhos da certeza, todos reconheceram que os quatro viajantes haviam dito a verdade e os outros homens haviam mentido. Assim a razão dos peregrinos se manifesta – e descmascara-se a fraude infesta. O darôes, o chefe de polícia e o cádi ali ficaram – e quedaram – de todos desprezados – e envergonhados.
Mas os quatro peregrinos – apaixonados pelo lindo figurino, ficaram perplexos ao ver a virgem – tornar destarte à sua origem.