ra noite de
São Silvestre véspera da maior festa da Escócia
e no Clube Filosófico de Levenford compacta assistência
se preparava para ver entrar o Ano Novo. Os sócios tratavam sem
cerimônia os convidados e, abandonando todo e qualquer pensamento
de profundos debates, consentiam em passar aquelas horas em afável
conversa. Muitas canções tinham sido cantadas e muitas histórias
narradas, intercalando-se palestras espontâneas, até que,
lá pelo meio do serão, caiu uma pausa na sala ruidosa e clara.
É que John Leckie tinha falado.
Leckie, que fora preboste do burgo durante mais de 30 anos, era agora
um velho taciturno, de 80 anos, e só aparecia no clube em ocasiões
solenes a fim de honrá-lo com sua presença de sócio
mais antigo. Sentava-se então no seu canto especial, permanecendo
calado, insigne e aparentemente distante.
Não deixaria de falar, porém, no momento adequado. Agora,
por exemplo, interrompendo uma conversa, maldizia a recente mudança
de tempo em Levenford:
-Vocês estão discorrendo sobre o degelo. Pois bem, posso
contar uma história sobre determinado degelo que sobreveio há
muito tempo,
história essa que tinha e não tinha nada a ver com o
tempo.
-Não há aqui esta noite gente que lembre de Marta Lang,
porém no meu tempo nenhuma mulher nesta freguesia era mais conhecida.
No finzinho do século passado ela possuía uma pequena tabacaria
na esquina da R. da Igreja com a Azinhaga Dobbie.
Essa propriedade extinguiu-se quando alargaram a estrada a fim de estender
os bondes mais pela cidade isso coisa de vinte anos passados; mas de
qualquer forma era onde Marta mantinha sua loja.
Alguns a chamavam Marta Trigueira, outros Marta da Bíblia,
porém somente nas suas costas, pois frente a frente ninguém
ousaria tomar liberdade com Marta Lang.
Não era corpulenta, muito pelo contrário. Tinha cabelos
pretos bem puxados, deixando exposta a testa; trajava com muita simplicidade
um vestido de sarja preta, podendo-se julgar que fosse uma mulher que jamais
atraísse o olhar duas vezes.
Pois se parecia uma sombra na escuridão de sua loja, contudo,
isso de trevas era coisa que não pairava em seu espírito.
Havia em seu rosto estreito e pálido uma expressão que nos
feria e atordoava uma espécie de chispa amarga e dura que saía
como fogo de seus olhos pretos e profundos. Certas pessoas tinham medo
dela e outras a detestavam, estando no entanto de acordo quanto a tratar-se
de mulher correta e às direitas.
Sua loja não era muito atraente. A janela era pequena com gelosias
de vidro esverdeado, parecia demasiado baixa para conter a imagem dum brigue
das Índias Orientais, que balouçava em cima dele e tudo quanto
suportava eram 3 cofres dispostos em fileira solene. A porta dura rangia
ao ser aberta.
Interior lôbrego. Parecia a loja de um boticário, com
seu balcão, sua pequena balança de metal e sua fileira de
jarras azuis e brancas; mas reinava certo silêncio severo, sendo
local demasiado frio no inverno e sobremaneira quente no verão.
Não era ponto para a gente se demorar, não.
Parede e meia com a loja era a cozinha da casa de Marta; dispunha duma
janela que dava para a Azinhaga Dobbie, sem contar outra parede divisória,
espécie de escotilha, digamos assim, deixando que da cozinha se
observasse a loja e vice-versa.
No tempo a que me estou referindo, o marido de Marta jazia morto e
enterrado havia quinze anos. Um tempão! Ela ficara com um filho,
um menino chamado Geordie. Quando Marta enviuvou, a criança
estava com três anos, de modo que teve de criá-lo. E olá
se o criou! O termo severo não basta para qualificar o modo pelo
qual ela o tratava. Jamais um lampejo de afeição humana cintilou
naqueles olhos pretos. Para quantos se atreviam a censurá-la a tal
respeito, Marta dispunha de resposta a calhar atirando-lhes nas fuças
capítulos e versículos do Eclesiastes. Sim, era rude e ríspida
com o filho, em tudo e por tudo.
La iam vivendo portanto Marta e seu filho, e ao tempo em que aconteceu
a coisa medonha que vou contar, Geordie completara 18 anos. Era um rapaz
robusto, de ombros largos, braços desenvoltos rematando em grandes
mãos avermelhadas. E que rosto agradável e franco! Ainda
assim, uma espécie de expressão simples e plácida
se acomodara em seu rosto como se o viço lhe tivesse sido esfolado
dali quando era criançola. Era aprendiz de maquinista e aprendia
o ofício no estaleiro.
Ora, no inverno de 1895, uma geada brava caiu sobre a região.
As estadas ficaram como ferro, a represa congelara, certas noites fazia
12oC, de manhã pairava uma camada de gelo no jarro e o mingau esfriava
antes que a gente o tomasse.
Dois dias antes do Natal, achava-me por volta das 18h30min na loja
de Marta quando Geordie apareceu vindo da cozinha. Logo que Marta deu com
os olhos nele, tapou com estrépito o boião, e perguntou-lhe
com aquele seu feitio ríspido:
- Onde vai?
- Pensei em dar um giro lá pela represa respondeu ele com
sua notória humildade. Balançava os patins, segurando-os
na mão pelas correias.
- Já não saiu a noite passada? retrucou ela Não
pode descobrir um trabalho mais proveitoso para entreter-se?
Geordie desculpou-se aludindo à vantagem de fazer exercício,
mas durante todo o tempo ela o ouviu sem erguer o cenho. Por fim levantou
de repente os olhos e foi como se a vista do filho a amainasse.
- Pois então trate de entrar antes que o relógio bata
9 horas declarou em tom seco E tome cuidado com a companhia...
Geordie demandou a rua e, como seu caminho coincidia com o meu, descemos
juntos a estrada. Apesar do frio, a noite era excelente. Os lampiões
na rua tinham círculos brancos em redor de seus globos, como cãs;
a luz estava em seu primeiro quarto crescente e parecia encravada no alto
veludo do céu como um broche; o tinido dos patins de Geordie tinham
sido do pai, imaginem vocês e só assim podia tê-los
produziam clangor agradável e nítido.
Gostava muito de patinar, vocês compreendem, e era mesmo um patinador
exímio. A verdade é que ninguém o igualava. Na esquina
do Rocio nos dissemos boa-noite; lá se foi ele para o gelo e eu
rumei para casa, para junto da lareira.
Durante dois ou três dias não vi Geordie. O Natal passou
e o inverno áspero. O povo dizia que isso não podia continuar;
e enquanto conversava breves segundos na encruzilhada, batia com os pés
no chão, asseverando que o gelo tinha que se quebrar sem demora
como em outras geadas piores. Mas olá se durou! Durou encarniçado
e rijo e no meado de semana mandaram comunicar de Darroch que a baía
estava toda congelada, coisa que não acontecia desde 7 anos.
Ora, naquele mesmo dia estive na loja de Marta; aliás, mais
cedo do que o habitual; lembro-me que a trombeta do quartel soara cinco
horas e meia. Eu já me munira de minha dose de tabaco, já
o guardara no bolso e pagara, estava apenas trocando dois dedos de prosa
com Marta, não que sentisse prazer nisso, mas na minha qualidade
de preboste convinha mais do que nunca me conservar resguardado de sua
língua mordaz.
Ela estava atras do balcão e eu em pé, no canto extremo,
quando de súbito a porta se escancarou e Geordie irrompeu. Quedou-se
na escuridão relativa e estava tão preocupado com o que ia
dizer que nem sequer me viu. Bradou logo:
- Mãe, a baía está gelada numa extensão
que vai até a ilha Ardmurren.
- E que benefício advém disso para mim ou você?
Geordie baixou o olhar para as botas, aparvalhando-se. E retrucou:
- Vai haver corrida!
- Corrida! repetiu ela de modo agudo, como se duvidasse dos próprios
ouvidos. Largou o tricô e dirigiu ao filho um olhar sombrio. Mas
Geordie prosseguiu:
- Pois não sabe, mãe? Corrida para disputar o troféu
Winton. Estão à minha espera, para que eu participe. A senhora
não se importa que eu tome parte?
Agora eu sabia o intento de Geordie: a corrida em cima do gelo, saindo
de Markinch, contornando a ilha de Ardmunren e voltando ao início.
Tratava-se de uma corrida histórica, facultada ao pessoal da região
e instituída pelo conde de Winton há tempos... alguns afirmavam
que se realizara pela primeira vez quando Rob Roy estava em pleno viço...
O conde oferecera uma espécie de troféu como prêmio
uma cabeça esgalhada de veado montada sobre carvalho, no alto
dum escudo de prata. Conquanto a corrida se realizasse raramente, o velho
costume ainda se mantinha e alguns lhe davam grande apreço.
De qualquer forma eu podia ver que Marta desconfiava do que o filho
queria dizer, pois o encarou de modo furioso e exclamou:
- Perdeu o juízo?
Geordie explicou:
- Mas me consideram o melhor da cidade, e será sábado
o dia de São Silvestre, de maneira que não precisarei faltar
ao serviço. Será... será uma honra.
- Honra, pois sim! bradou Marta. Negra desonra devia você
dizer. Acaso ainda é um garoto que ignora o que significa isso?
Um ponto de encontro para os ímpios das imediações.
Brigas e bebedeiras entre homens corruptos e pecadores. E, acima de tudo,
uma corrida com os empreiteiros da iniquidade, apostando estupidamente
no vencedor! Preocupei-me com isso em meus tempos de jovem, antes da divina
graça me bafejar.
Fez um esforço e acalmou-se.
- Não! Não! Não tomará parte em semelhante
despautério, em plena luz à face de Deus!
- Mas mãe, não apostarei nem beberei uma gota garantiu
Geordie. Tudo quanto desejo é apenas patinar representando a cidade.
- Acaso julga que pode pegar em piche sem se sujar? refutou Marta.
O beiço de Geordie revirou para baixo como o duma criança.
Ele resmungou:
- Por que vive assim a humilhar-me? Trata-me como um cão.
O rosto de Marta contraiu-se.
- Volte lá para dentro! gritou, apontando a cozinha. Não
irá a nenhuma corrida! E cubra-o o ardente e negregado opróbrio
já que se atreveu a erguer a voz contra sua mãe!
Ele volveu-lhe um olhar desalentado e, apesar de seu tamanho, baixou
a cabeça e se retirou. Marta sorveu o ar por entre os dentes. Seu
rosto estava lívido, conquanto algo triunfante, como a fisionomia
duma mulher que castiga e extrai disso um amargo arroubo.
Ora, muito bem, continuou a semana assim como o frio. Na véspera
de São Silvestre caíram alguns flocos de neve, desprendendo-se
dum céu nublado. Gente profetizava um fim de ano velho com nevasca,
porém a manhã do último dia rompeu clara e tudo quanto
ficou da neve foi um resto que polvilhava cantos e fendas, feito açúcar.
O sol surgiu, redondo e vermelho, como que envergonhado de ter permanecido
tanto tempo ausente. E à medida que ia subindo no céu, se
tornava mais brilhante e vigoroso.
Notem vocês que esse era o dia da corrida. Ainda que eu não
tivesse grande interesse pelo caso, o dia estava tão vistoso que
quando o corregedor Weir me convidou para seguir com ele até Markinch
respondi que iria, sim. Saímos portanto após o jantar e chegamos
cedo a Markinch. A única rua da aldeia geralmente tão vazia
que um cão poderia dormir no meio dela com a maior segurança
estava negra de gente, rindo e rumando em conjunto para a rija camada
de gelo alvo que marginava a praia. Nas imediações da enseada
congelada haviam colocado algumas tendas e a multidão apinhava-se
em redor daquelas barracas, bastante animada, como se deve supor.
Quase duzentas pessoas estavam agrupadas sobre o gelo; uma assistência
compacta, considerando-se bem, à qual não faltava gente de
importância.
Quando se aproximou a hora da corrida, recrudesceu sobremodo a excitação
geral. Às 3 horas os competidores saíram de sua tenda dirigindo-se
para o espaço claro que formava o ponto de saída; eram 6
moços os patinadores selecionados do distrito e principiaram
a patinar por ali, traçando círculos e dando curtos arremessos
pela pista.
Devo dizer-lhes sem rebuços que quando os vi meus olhos quase
caíram de minha cabeça, pois entre eles dei com Geordie.
Por incrível que fosse, assim era. Geordie Lang estava lá!
Percebia-se nele certo ar esquisito e nervoso, como se estivesse alegre
e ao mesmo tempo triste por se encontrar ali. Já lhes disse que
era um rapaz taludo porém plácido, e agora se notava nele
um ar assustado e zonzo, como se não soubesse por nada deste mundo
como viera parar em Markinch.
A verdade é que o corregedor e eu fomos até lá
perto e falamos com Geordie.
Weir indagou:
- Então, como se sente a respeito, Geordie?
Eu não contara a Weir nada do que sabia, e além disso
ele não era freguês de Marta.
- Sinto-me bem disposto, obrigado Sr. Weir respondeu Geordie.
- Como é? Estão todos empolgados e em ordem? Dia melhor
para isso não poderiam ter.
- Melhor ou não, tanto faz, pois não ganharei nunca
retrucou Geordie com o mesmo feitio descorçoado.
O corregedor riu e bateu nas costas de Geordie.
- Já é meia vitória você haver convencido
sua mãe ponderei Receava que ela não o deixasse vir.
Geordie não deu resposta. Ouviu o que eu disse mas fingiu que
não escutara. Notei rápido movimento em suas sobrancelhas
ruivas. Compenetrei-me então de que ele se safara de suas engrenagens
abalando para a corrida contra a vontade materna. E foi o que se deu, mesmo.
Enquanto isso, Weir continuava falando.
- Tome tento quando estiver contornando a ilha aconselhou Não
faça curva muito larga senão perderá distancia, ouviu?
Nós 3 olhamos para Ardmurren, que se erguia qual negrejante
outeiro na ampla planície erma. Distava 3 milhas, lá no meio
da enseada, mas na claridade intensa se mostrava tão nítida
que podíamos ver os racimos escarlates sobre os distantes azevinhos.
- E conserve-se sempre no meio continuou o corregedor, gesticulando
como se conhecesse tudo a respeito. Assim disporá de gelo mais
liso.
Geordie fez que sim com a cabeça, de modo indiferente, como
a dizer: Seja lá como for, agora estou metido nisso.
Mas o que disse foi:
- Empenhar-me-ei a fundo. É o máximo que posso fazer.
- Boa sorte então, rapaz bradou Weir. E como Geordie se
afastasse, que haveria eu de dizer senão o mesmo?
Bem, a essa altura eles já se preparavam para a partida, todos
6 em linha, em seus lugares, marcados por palhas.
Dois dos outros patinadores eu conhecia de nome. O homem do meio
chamavam-no Big Callum era um atleta que havia ganho medalhas em arremessos
de mastro, o que não é pouco, nos Jogos de Luss, e parecia
não estar sequer apreensivo. Junto dele estava Dewar, um rapagão
reforçado que apertava o cinto e mascava tabaco a fim de retemperar-se.
O outros 3 rapazes na extremidade da linha não inspiravam muita
chance, mas pelos respectivos modos davam impressão de que iam tentar.
Afinal, ficaram prontos. Colquhoun, o guarda, que devia dar o sinal
de largada, pôs a espingarda de caça no ombro e ergueu o rosto
para o céu. A multidão reteve a respiração.
Colquhoun berrou: - Estão prontos, rapazes?
Vi Geordie cerrar os dentes, entrelaçar as enormes mãos
vermelhas e nisso, pum! a espingarda disparou. Os patins puseram-se a esmagar
o gelo. O bando partiu.
A multidão deu em gritar. A partida foi boa e os 6 rapazes arremetiam
pela pista em fileira. Arremetiam por sobre aquela vastidão, adejando
qual bando de pássaros através dum mar de vidro; e o retinir
de seus patins tinha tal zunido de asas que parecia uma assobio.
- Ótima, excelente partida! exclamou alguém Não
há o que criticar.
De fato, nada ocorreu de anormal na primeira milha; depois, numa espécie
de vantagem gradual, Callum principiou a destacar-se. Não era um
patinador gracioso, mas tinha muito vigor e avançava mediante selvagens
arremessos de suas pernas fortes.
Callum na frente! Distanciou-se 10 jardas! bradava o guardião
assistindo de binóculo.
- Dewar em segundo bradou outra vez Colquhoun. Os outros formam
uma penca.
Assim continuaram durante outra milha. Depois aproximaram-se de Ardmurren,
dirigindo-se para lá como um arco para um alvo. Estavam em longa
coluna, agora, e os 6 zarparam, contornando a ilha. Uma espécie
de suspiro, como um sopro de vento, irrompeu da multidão assim que
os patinadores sumiram. Depois houve um brado de alento quando o primeiro
homem reapareceu.
- Callum deu a volta primeiro! Callum vem na frente!
Ao meu lado Weir soerguia-se na ponta dos pés. Em seus bons
tempos tinha sido um homem sangüíneo; pois bem, parecia púrpura
agora. Gritou para mim:
- Reparou? Lang entrou bem na curva. Vem agora do lado de dentro, como
aconselhei.
Distante, bem longe, Geordie segundo pude ver vinha em terceiro.
A velocidade era demasiada para os restantes. Arrastavam-se atrás,
a grande distância. Mas Geordie vinha bem, com fácil ímpeto
de suas pernas esguias. Não havia dúvida que se tratava dum
patinador gracioso, esplêndido,
Durante o tempo todo a multidão se manteve em alvoroço;
mas eu, a bem dizer, não me sentia excitado. Pesava-me qualquer
coisa; não podia explicar o que fosse nem como me sentia, mas sem
dúvida era certo receio e alguma apreensão.
Lá vinham eles, cada vez se aproximando mais. Na metade do percurso
se podia ver, mesmo a certa distância, que Callum estava cansando.
Dewar dera em forçá-lo, rente aos seus calcanhares. Dewar
e Callum irrompiam, quase paralelos. Depois Callum começou a fraquejar.
A multidão mantinha-se em febre, metade gritando o nome de Callum,
outra metade instigando Dewar, tão empolgada com ambos que se esqueceu
de Geordie. Mas o corregedor estava atento em Lang.
- Olhe para ele, repare só! bradou-me. Está vindo!
E indubitavelmente Geordie encompridava suas já longas pernas
e vinha como uma rajada de vento.
O pessoal de Levenford principiou a fazer grande escarcéu, vociferando:
- Geordie! Venha!
Claro que Geordie não podia escutá-los, mas lá
vinha; e antes que se pudesse pestanejar, eis que ele passou tão
depressa por entre Callum e Dewar que estes pareceram recuar distanciados
dele que já estava a duas, cinco, dez mil jardas na frente. Sim,
a uma milha de chegada ele se achava cerca de 20 jardas na dianteira.
- Geordie! Geordie Lang! bramia a multidão, aplaudindo
aos gritos e atirando os bonés para o ar.
Pois, conforme já lhes disse e é a pura verdade, no meio
de todo aquele berreiro eu sentia uma opressão desagradável.
E quanto maior a gritaria, pior o meu mal-estar. Não sei dizer se
acaso se tratava da idéia de Marta ou da expressão esquisita
no rosto de Geordie; mas, e invoco o testemunho de Deus, eu sentia medo
que alguma coisa medonha pudesse acontecer. E aconteceu mesmo.
A meia milha da chegada, quando Geordie já se encontrava bem
na dianteira dos outros, de repente e sem aviso sobreveio um estrondo capaz
de paralisar o coração da gente, um ruído pavoroso,
semelhante ao estouro do Juízo Final e que interrompeu o alarido
como se o cortasse de chofre.
Só Deus sabe o número infinito de história a respeito
da quebra de gelo e submersão de patinadores; mas esta difere de
tudo mais como inferno difere do céu.
Vi com estes meus olhos e a recordação me dá calafrios.
O gelo rompeu-se e Geordie intrometeu-se na fenda como uma pedra. Um segundo
antes adejava como um pássaro... no segundo imediato era sorvido
por um buraco hiante que despejava água escura como fluido canceroso.
Os outros, que viam atrás dele, desviaram-se como coisas amalucadas.
Apenas Geordie foi sorvido.
Tudo isso aconteceu um segundo antes que pudéssemos respirar.
Subiu da multidão uma espécie de arquejo, depois um lamento
e por fim um grito de horror. O rosto sangüíneo de Weir ficou
branco feito um sudário.
-Deus Onipotente! bradou Colquhoun; atirou para trás a espingarda
e saiu a correr por cima do gelo. Estabeleceu-se certo pânico, houve
grande disparada na praia, porém alguns dentre nós seguiram
o guarda.
Oh! Foi um caso terrível, horrendo! Quando atingimos o local
não havia sequer sinal de Geordie e ao tentarmos chegar rente à
orla quebrada principiou tamanha crepitação que o desmoronar
apavoraria o coração mais intrépido. Veio gente da
aldeia com cordas e uma escada, porém não conseguíamos
ver indício ao menos de Geordie. Então Callum, que participara
da corrida, arrancou fora os patins. Conhecia muito bem Geordie e estava
desesperado de aflição. Exclamava:
- Hei de tirá-lo! Hei de tirá-lo!
Eis que amarraram uma corda em redor de Callum, após o que ele
resvalou escada abaixo e se meteu pela água gelada adentro. Foi
a coisa mais corajosa que já vi. Desceu uma, duas, três vezes.
E na última, ao subir com o rosto lívido, rilhando os dentes,
os cabelos empastados sobre a fronte, vinha com Geordie nos braços.
Jamais vocês ouviram um clamor como o que se ergueu então.
E o mais angustiante foi ser um brado inútil. Geordie estava morto.
Tentamos uma porção de recursos quando o estendemos no dique.
Todas as coisas possíveis durante uma hora; porém tudo foi
em vão. Ele deve ter triturado a cabeça contra o bloco de
gelo na praia da enseada. Foi um negócio medonho e houve terrível
lufa-lufa. Este dizia uma coisa, aquele propunha outra. Levantou-se uma
celeuma contra Colquhoun que se responsabilizara pelos preparativos e arranjos
e divulgara que a corrida era viável. O guarda ficou aflitíssimo
e não cessava de jurar diante de mim, que naquela manhã mesmo
tinha ido duas vezes até Ardmurren. Verdade, sim! Mas não
pensou em rodear a ilha e voltar pelo meio, onde o gelo era mais tênue,
compreendem? E o calor do sol dera cabo dele.
Ora, o que sucedeu sucedeu, não havia remédio. Muito
menos havia tempo e lugar para lançar apodos. E eu, na qualidade
de preboste, tinha direito de opinar. Reduzi-os ao silêncio, e a
conclusão do que colocasse o corpo do pobre Geordie numa carroça
da herdade, cobrindo-o com a devida consideração. Depois,
com o cabriolé de Weir na frente, iniciamos o regresso a Levenford.
Santo Deus! Imaginem nosso percurso sacolejante à luz do sol,
e se compenetrarão de quanto foi exaustivo e molesto o nosso trabalho.
Eu e o corregedor não trocamos uma única palavra durante
o trajeto de volta. Pois claro: tínhamos que pensar agora
em Marta, e no que ela iria dizer-nos. Não que eu temesse seu sofrimento.
Não. Hoje já sou homem idoso, e posso falar franco. Temia
era a negregada mordacidade de sua língua.
Quando nos aproximamos de Levenford, o céu estava nublado e
uma chuva miúda nos atacou. Devem vocês calcular que minha
missão não era do meu agrado, absolutamente; de modo que
quando entramos na Rua da Igreja, meus olhos saltaram quando vi o pároco
caminhando devagar pelas lajes. Era exatamente a hora habitual em que nos
sábados ele se dirigia à tabacaria de Marta. Chamei-o alto
assim que o vi, fazendo-o parar.
O pároco era um homenzinho de óculos, meio corcunda,
sempre às voltas com seus livros, porém excelente criatura
apesar de tudo, tanto no púlpito como fora dele. Não sabia
tergiversar e logo viu ser do seu dever acompanhar-nos até a casa
de Marta.
Ora, não sei fingir aquilo que não sou. Estava acabrunhadíssimo
com o que havia visto na praia e não tinha estômago para aturar
mais. Quando o pároco e eu entramos na botica, meu coração
batia martelando minhas costelas.
Marta achava-se lá dentro, em pé atrás do balcão,
à espera do filho que lhe desobedecera. Podia-se ver pela expressão
de seu olhar que estava disposta a castigá-lo... não com
relhos, mas com escorpiões. Vendo-nos juntos, desconfiou em sua
cachola que viéramos implorar a respeito de Geordie. Bradou logo:
- Não adianta, ministro. Inútil vir rogar-me que o perdoe.
Ele próprio traçou seu destino.
Percorreu-me um calafrio ao ouvir tais palavras.,
- Marta, ouça, mulher disse o ministro com voz plácida.
Deve perdoar seu filho.
- Não o perdôo enquanto ele não se ajoelhar...
enquanto não implorar meu perdão. Seus olhos fitaram-no,
dardejando. Mas o ministro não vacilou.
- Concito-a a perdoar seu filho insistiu ele Ou trata de fazer
isso já ou se arrependerá pelo resto de seus dias.
Um repelão contraiu o rosto de Marta, que retrucou com veemência:
- Só depois de havê-lo castigado.
- Puni-lo é que noa fará declarou o ministro com voz
acabrunhada - ... pois está tudo acabado.
E em seguida contou o que havia sucedido.
Houve uma espécie de constrição no queixo de Marta,
que ainda assim disse alto:
- Não acredito. Está mentindo para assustar-me
e livrá-lo. Hei de punir meu filho.
Mal estas palavras lhe saíram da boca, a porta se abriu. Os
homens haviam chegado com a carroça e, ante a multidão que
se juntara ali, ante a chuva e tantas outras coisas, acharam preferível
largar lá dentro, sem demora, a carga que traziam.
Quando entraram, cambaleando um pouco, pois o peso era muito e o chão
desigual, fiquei como se estivesse fulminado, sem conseguir tirar os olhos
de cima de Marta. Num vislumbre ela vira tudo. Seu rosto estava como pedra,
seus olhos pareciam feridas no meio daquela estranha lividez e sua expressão
era a de uma mulher atônita. Não se moveu, absolutamente.
Mesmo quando passaram por ela em direção à cozinha,
Marta permaneceu rígida, de cenho preso na parece como se lutasse
com a própria respiração. Eles estavam tentando levar
o pobre Geordie para o quarto em cima, porém não conseguiam
subir direito a escada. Foi então que ela de repente abriu os lábios,
dizendo em voz alta e apontando para o sofá da cozinha:
- Deponham-no ali.
Colocaram-no onde ela ordenou.
- Agora deixem-me sozinha exclamou com uma voz apavorante.
Deus do Céu! Afirmo-lhes que bem aliviado me senti em zarpar
dali. O ministro foi o último a deixar a loja. Ficou parado durante
algum tempo, a olhar para ela, ergueu o braço, depois o deixou cair,
fez menção de falar mas permaneceu calado; finalmente saiu
para a chuva.
Quem viu aquele São Silvestre em Levenford não o esquecerá.
Pessoas andavam pelas ruas como se estivessem na igreja e falavam sussurrando.
E quando passavam pela loja da rua da Igreja, não se atreviam a
falar, absolutamente.
No Clube, aquela noite, éramos pouquíssimos. Conforme
vocês sabem, sempre foi hábito entre os sócios assistir
a entrada do Ano Novo de maneira pomposa, como estamos fazendo esta noite.
Por uma vez tal costume se interrompeu. O mesmo ocorreu na cidade. Quando
o relógio bateu as doze pancadas, expulsando o Ano Velho, recebendo
o Ano Novo, não se viu outro único som. Nem de sinos, nem
de trombetas, nem de coro na Encruzilhada... Apenas um silêncio mortal.
E quando a última badalada se extinguiu, todos nós pusemos
nossos capotões de três palas e fomos para casa.
Quanta umidade, tristeza e escuridão! Era um degelo interminável;
enquanto íamos aos pulos ao longo da rua empoçada, ouvíamos
o gotejar da água dos beirais e o escorrer da chuva como lágrimas
ao longo das vidraças.
Éramos 4 ou 5, todos seguindo a mesma estrada e quando passamos
pela esquina da Azinhaga Dobbie, vimos estreita barra de luz emergindo
da escuridão. Não era uma luz clara e tépida que pudesse
vir duma casa alegre e plácida; era uma luz pálida e frouxa.
Sabermos que ela emanava da cozinha de Marta, tornava-a mais assustadora.
Estava conosco John Grierson, homem que não se deixava facilmente
assustar, e ainda por cima um tanto sarcástico. Por escandaloso
que parecesse, não houve quem o contivesse de ir até a janela
dar uma espiada para saber o que se passava lá dentro. Assim, pois,
muito a contragosto, o seguimos pela azinhaga abaixo e espreitamos aquela
misteriosa janela.
Bem, o que vimos jamais vocês acreditarão, mas pelos Evangelhos,
juro que é verdade. A peça estava imersa em sombras, mas
a frouxa luz duma vela nos permitia ver Marta Lang andando dum lado para
outro, feito criatura demente. Sim, era ela, embora fiando-me pelo hábito,
não devesse reconhecê-la então: tinha uma expressão
desvalida, como se houvesse caído em si mesma, e seus cabelos haviam
tomado cor da neve em flocos. Retorcia as mãos como se estivesse
lutando com alguma coisa e durante o tempo todo dizia entre lamentos o
nome de seu filho Geordie.
A Bíblia estava aberta em cima da mesa da cozinha, e uma ou
duas vezes ela fez menção de apanhá-la para ler. Mas
não podia. Não podia, não!
Geordie! Geordie! não cessava de exclamar alto. Até
que se repente se voltou e se jogou de joelhos junto ao catre baixo. Passou
um braço em redor do pescoço do filho morto, de maneira que
a cabeça dele revirou e pendeu como a cabeça duma criança
sobre o peito murcho da mãe; e com a outra mão, principiou
a acariciar-lhe a face fria e rija e a alisar-lhe os cabelos.
O rosto do defunto, batido pela luz da vela, olhava para cima com um
esgar de fantasma que horrorizaria vocês. Marta, sim, Marta Trigueira,
começou a embalar-se para frente e para trás sobre os joelhos,
desesperada de aflição.
- Geordie! Geordie! bradava em tom desesperado Jamais vim a saber,
como sei agora, quanto o amava, meu filho! Mas amei-o sempre, sempre.
E não parava mais.
Nenhum de nós mexeu mão ou pé. Arraigados ali
no chão estávamos, tamanho medo e dó. Por entre o
gotejar da chuva vinha aquele som esquisito e oscilante que nunca esquecerei
enquanto for vivo. Ahn! Era o tétrico arfar dos soluços de
Marta.