O conto do Preboste
A.J. Cronin
 
 

ra noite de São Silvestre – véspera da maior festa da Escócia – e no Clube Filosófico de Levenford compacta assistência se preparava para ver entrar o Ano Novo. Os sócios tratavam sem cerimônia os convidados e, abandonando todo e qualquer pensamento de profundos debates, consentiam em passar aquelas horas em afável conversa. Muitas canções tinham sido cantadas e muitas histórias narradas, intercalando-se palestras espontâneas, até que, lá pelo meio do serão, caiu uma pausa na sala ruidosa e clara. É que John Leckie tinha falado.
Leckie, que fora preboste do burgo durante mais de 30 anos, era agora um velho taciturno, de 80 anos, e só aparecia no clube em ocasiões solenes – a fim de honrá-lo com sua presença de sócio mais antigo. Sentava-se então no seu canto especial, permanecendo calado, insigne e aparentemente distante.
Não deixaria de falar, porém, no momento adequado. Agora, por exemplo, interrompendo uma conversa, maldizia a recente mudança de tempo em Levenford:
-Vocês estão discorrendo sobre o degelo. Pois bem, posso contar uma história sobre determinado degelo que sobreveio há muito tempo,
história essa que tinha e não tinha nada a ver com o tempo.
-Não há aqui esta noite gente que lembre de Marta Lang, porém no meu tempo nenhuma mulher nesta freguesia era mais conhecida. No finzinho do século passado ela possuía uma pequena tabacaria na esquina da R. da Igreja com a Azinhaga Dobbie.
Essa propriedade extinguiu-se quando alargaram a estrada a fim de estender os bondes mais pela cidade – isso coisa de vinte anos passados; mas de qualquer forma era onde Marta mantinha sua loja.
Alguns a chamavam “Marta Trigueira”, outros “Marta da Bíblia”, porém somente nas suas costas, pois frente a frente ninguém ousaria tomar liberdade com Marta Lang.
Não era corpulenta, muito pelo contrário. Tinha cabelos pretos bem puxados, deixando exposta a testa; trajava com muita simplicidade um vestido de sarja preta, podendo-se julgar que fosse uma mulher que jamais atraísse o olhar duas vezes.
Pois se parecia uma sombra na escuridão de sua loja, contudo, isso de trevas era coisa que não pairava em seu espírito. Havia em seu rosto estreito e pálido uma expressão que nos feria e atordoava – uma espécie de chispa amarga e dura que saía como fogo de seus olhos pretos e profundos. Certas pessoas tinham medo dela e outras a detestavam, estando no entanto de acordo quanto a tratar-se de mulher correta e às direitas.
Sua loja não era muito atraente. A janela era pequena com gelosias de vidro esverdeado, parecia demasiado baixa para conter a imagem dum brigue das Índias Orientais, que balouçava em cima dele e tudo quanto suportava eram 3 cofres dispostos em fileira solene. A porta dura rangia ao ser aberta.
Interior lôbrego. Parecia a loja de um boticário, com seu balcão, sua pequena balança de metal e sua fileira de jarras azuis e brancas; mas reinava certo silêncio severo, sendo local demasiado frio no inverno e sobremaneira quente no verão. Não era ponto para a gente se demorar, não.
Parede e meia com a loja era a cozinha da casa de Marta; dispunha duma janela que dava para a Azinhaga Dobbie, sem contar outra parede divisória, espécie de escotilha, digamos assim, deixando que da cozinha se observasse a loja e vice-versa.
No tempo a que me estou referindo, o marido de Marta jazia morto e enterrado havia quinze anos. Um tempão! Ela ficara com um filho, um menino chamado Geordie. Quando  Marta enviuvou, a criança estava com três anos, de modo que teve de criá-lo. E olá se o criou! O termo “severo” não basta para qualificar o modo pelo qual ela o tratava. Jamais um lampejo de afeição humana cintilou naqueles olhos pretos. Para quantos se atreviam a censurá-la a tal respeito, Marta dispunha de resposta a calhar atirando-lhes nas fuças capítulos e versículos do Eclesiastes. Sim, era rude e ríspida com o filho, em tudo e por tudo.
La iam vivendo portanto Marta e seu filho, e ao tempo em que aconteceu a coisa medonha que vou contar, Geordie completara 18 anos. Era um rapaz robusto, de ombros largos, braços desenvoltos rematando em grandes mãos avermelhadas. E que rosto agradável e franco! Ainda assim, uma espécie de expressão simples e plácida se acomodara em seu rosto como se o viço lhe tivesse sido esfolado dali quando era criançola. Era aprendiz de maquinista e aprendia o ofício no estaleiro.
Ora, no inverno de 1895, uma geada brava caiu sobre a região. As estadas ficaram como ferro, a represa congelara, certas noites fazia –12oC, de manhã pairava uma camada de gelo no jarro e o mingau esfriava antes que a gente o tomasse.
Dois dias antes do Natal, achava-me por volta das 18h30min na loja de Marta quando Geordie apareceu vindo da cozinha. Logo que Marta deu com os olhos nele, tapou com estrépito o boião, e perguntou-lhe com aquele seu feitio ríspido:
- Onde vai?
- Pensei em dar um giro lá pela represa – respondeu ele com sua notória humildade. Balançava os patins, segurando-os na mão pelas correias.
- Já não saiu a noite passada? – retrucou ela – Não pode descobrir um trabalho mais proveitoso para entreter-se?
Geordie desculpou-se aludindo à vantagem de fazer exercício, mas durante todo o tempo ela o ouviu sem erguer o cenho. Por fim levantou de repente os olhos e foi como se a vista do filho a amainasse.
- Pois então trate de entrar antes que o relógio bata 9 horas – declarou em tom seco – E tome cuidado com a companhia...
Geordie demandou a rua e, como seu caminho coincidia com o meu, descemos juntos a estrada. Apesar do frio, a noite era excelente. Os lampiões na rua tinham círculos brancos em redor de seus globos, como cãs; a luz estava em seu primeiro quarto crescente e parecia encravada no alto veludo do céu como um broche; o tinido dos patins de Geordie – tinham sido do pai, imaginem vocês e só assim podia tê-los – produziam clangor agradável e nítido.
Gostava muito de patinar, vocês compreendem, e era mesmo um patinador exímio. A verdade é que ninguém o igualava. Na esquina do Rocio nos dissemos boa-noite; lá se foi ele para o gelo e eu rumei para casa, para junto da lareira.
Durante dois ou três dias não vi Geordie. O Natal passou e o inverno áspero. O povo dizia que isso não podia continuar; e enquanto conversava breves segundos na encruzilhada, batia com os pés no chão, asseverando que o gelo tinha que se quebrar sem demora como em outras geadas piores. Mas olá se durou! Durou encarniçado e rijo e no meado de semana mandaram comunicar de Darroch que a baía estava toda congelada, coisa que não acontecia desde 7 anos.
Ora, naquele mesmo dia estive na loja de Marta; aliás, mais cedo do que o habitual; lembro-me que a trombeta do quartel soara cinco horas e meia. Eu já me munira de minha dose de tabaco, já o guardara no bolso e pagara, estava apenas trocando dois dedos de prosa com Marta, não que sentisse prazer nisso, mas na minha qualidade de preboste convinha mais do que nunca me conservar resguardado de sua língua mordaz.
Ela estava atras do balcão e eu em pé, no canto extremo, quando de súbito a porta se escancarou e Geordie irrompeu. Quedou-se na escuridão relativa e estava tão preocupado com o que ia dizer que nem sequer me viu. Bradou logo:
- Mãe, a baía está gelada numa extensão que vai até a ilha Ardmurren.
- E que benefício advém disso para mim ou você?
Geordie baixou o olhar para as botas, aparvalhando-se. E retrucou:
- Vai haver corrida!
- Corrida! – repetiu ela de modo agudo, como se duvidasse dos próprios ouvidos. Largou o tricô e dirigiu ao filho um olhar sombrio. Mas Geordie prosseguiu:
- Pois não sabe, mãe? Corrida para disputar o troféu Winton. Estão à minha espera, para que eu participe. A senhora não se importa que eu tome parte?
Agora eu sabia o intento de Geordie: a corrida em cima do gelo, saindo de Markinch, contornando a ilha de Ardmunren e voltando ao início. Tratava-se de uma corrida histórica, facultada ao pessoal da região e instituída pelo conde de Winton há tempos... alguns afirmavam que se realizara pela primeira vez quando Rob Roy estava em pleno viço... O conde oferecera uma espécie de troféu como prêmio – uma cabeça esgalhada de veado montada sobre carvalho, no alto dum escudo de prata. Conquanto a corrida se realizasse raramente, o velho costume ainda se mantinha e alguns lhe davam grande apreço.
De qualquer forma eu podia ver que Marta desconfiava do que o filho queria dizer, pois o encarou de modo furioso e exclamou:
- Perdeu o juízo?
Geordie explicou:
- Mas me consideram o melhor da cidade, e será sábado o dia de São Silvestre, de maneira que não precisarei faltar ao serviço. Será... será uma honra.
- Honra, pois sim! – bradou Marta. – Negra desonra devia você dizer. Acaso ainda é um garoto que ignora o que significa isso? Um ponto de encontro para os ímpios das imediações. Brigas e bebedeiras entre homens corruptos e pecadores. E, acima de tudo, uma corrida com os empreiteiros da iniquidade, apostando estupidamente no vencedor! Preocupei-me com isso em meus tempos de jovem, antes da divina graça me bafejar.
Fez um esforço e acalmou-se.
- Não! Não! Não tomará parte em semelhante despautério, em plena luz à face de Deus!
- Mas mãe, não apostarei nem beberei uma gota – garantiu Geordie. – Tudo quanto desejo é apenas patinar representando a cidade.
- Acaso julga que pode pegar em piche sem se sujar? – refutou Marta.
O beiço de Geordie revirou para baixo como o duma criança. Ele resmungou:
- Por que vive assim a humilhar-me? Trata-me como um cão.
O rosto de Marta contraiu-se.
- Volte lá para dentro! – gritou, apontando a cozinha. – Não irá a nenhuma corrida! E cubra-o o ardente e negregado opróbrio já que se atreveu a erguer a voz contra sua mãe!
Ele volveu-lhe um olhar desalentado e, apesar de seu tamanho, baixou a cabeça e se retirou. Marta sorveu o ar por entre os dentes. Seu rosto estava lívido, conquanto algo triunfante, como a fisionomia duma mulher que castiga e extrai disso um amargo arroubo.
Ora, muito bem, continuou a semana assim como o frio. Na véspera de São Silvestre caíram alguns flocos de neve, desprendendo-se dum céu nublado. Gente profetizava um fim de ano velho com nevasca, porém a manhã do último dia rompeu clara e tudo quanto ficou da neve foi um resto que polvilhava cantos e fendas, feito açúcar. O sol surgiu, redondo e vermelho, como que envergonhado de ter permanecido tanto tempo ausente. E à medida que ia subindo no céu, se tornava mais brilhante e vigoroso.
Notem vocês que esse era o dia da corrida. Ainda que eu não tivesse grande interesse pelo caso, o dia estava tão vistoso que quando o corregedor Weir me convidou para seguir com ele até Markinch respondi que iria, sim. Saímos portanto após o jantar e chegamos cedo a Markinch. A única rua da aldeia – geralmente tão vazia que um cão poderia dormir no meio dela com a maior segurança – estava negra de gente, rindo e rumando em conjunto para a rija camada de gelo alvo que marginava a praia. Nas imediações da enseada congelada haviam colocado algumas tendas e a multidão apinhava-se em redor daquelas barracas, bastante animada, como se deve supor.
Quase duzentas pessoas estavam agrupadas sobre o gelo; uma assistência compacta, considerando-se bem, à qual não faltava gente de importância.
Quando se aproximou a hora da corrida, recrudesceu sobremodo a excitação geral. Às 3 horas os competidores saíram de sua tenda dirigindo-se para o espaço claro que formava o ponto de saída; eram 6 moços – os patinadores selecionados do distrito – e principiaram a patinar por ali, traçando círculos e dando curtos arremessos pela pista.
Devo dizer-lhes sem rebuços que quando os vi meus olhos quase caíram de minha cabeça, pois entre eles dei com Geordie. Por incrível que fosse, assim era. Geordie Lang estava lá! Percebia-se nele certo ar esquisito e nervoso, como se estivesse alegre e ao mesmo tempo triste por se encontrar ali. Já lhes disse que era um rapaz taludo porém plácido, e agora se notava nele um ar assustado e zonzo, como se não soubesse por nada deste mundo como viera parar em Markinch.
A verdade é que o corregedor e eu fomos até lá perto e falamos com Geordie.
Weir indagou:
- Então, como se sente a respeito, Geordie?
Eu não contara a Weir nada do que sabia, e além disso ele não era freguês de Marta.
- Sinto-me bem disposto, obrigado Sr. Weir – respondeu Geordie.
- Como é? Estão todos empolgados e em ordem? Dia melhor para isso não poderiam ter.
- Melhor ou não, tanto faz, pois não ganharei nunca – retrucou Geordie com o mesmo feitio descorçoado.
O corregedor riu e bateu nas costas de Geordie.
- Já é meia vitória você haver convencido sua mãe – ponderei – Receava que ela não o deixasse vir.
Geordie não deu resposta. Ouviu o que eu disse mas fingiu que não escutara. Notei rápido movimento em suas sobrancelhas ruivas. Compenetrei-me então de que ele se safara de suas engrenagens abalando para a corrida contra a vontade materna. E foi o que se deu, mesmo.
Enquanto isso, Weir continuava falando.
- Tome tento quando estiver contornando a ilha – aconselhou – Não faça curva muito larga senão perderá distancia, ouviu?
Nós 3 olhamos para Ardmurren, que se erguia qual negrejante outeiro na ampla planície erma. Distava 3 milhas, lá no meio da enseada, mas na claridade intensa se mostrava tão nítida que podíamos ver os racimos escarlates sobre os distantes azevinhos.
- E conserve-se sempre no meio – continuou o corregedor, gesticulando como se conhecesse tudo a respeito. – Assim disporá de gelo mais liso.
Geordie fez que sim com a cabeça, de modo indiferente, como a dizer: “Seja lá como for, agora estou metido nisso”.
Mas o que disse foi:
- Empenhar-me-ei a fundo. É o máximo que posso fazer.
- Boa sorte então, rapaz – bradou Weir. – E como Geordie se afastasse, que haveria eu de dizer senão o mesmo?
Bem, a essa altura eles já se preparavam para a partida, todos 6 em linha, em seus lugares, marcados por palhas.
Dois dos outros patinadores eu conhecia de nome. O homem do meio – chamavam-no Big Callum – era um atleta que havia ganho medalhas em arremessos de mastro, o que não é pouco, nos Jogos de Luss, e parecia não estar sequer apreensivo. Junto dele estava Dewar, um rapagão reforçado que apertava o cinto e mascava tabaco a fim de retemperar-se. O outros 3 rapazes na extremidade da linha não inspiravam muita chance, mas pelos respectivos modos davam impressão de que iam tentar.
Afinal, ficaram prontos. Colquhoun, o guarda, que devia dar o sinal de largada, pôs a espingarda de caça no ombro e ergueu o rosto para o céu. A multidão reteve a respiração. Colquhoun berrou: - Estão prontos, rapazes?
Vi Geordie cerrar os dentes, entrelaçar as enormes mãos vermelhas e nisso, pum! a espingarda disparou. Os patins puseram-se a esmagar o gelo. O bando partiu.
A multidão deu em gritar. A partida foi boa e os 6 rapazes arremetiam pela pista em fileira. Arremetiam por sobre aquela vastidão, adejando qual bando de pássaros através dum mar de vidro; e o retinir de seus patins tinha tal zunido de asas que parecia uma assobio.
- Ótima, excelente partida! – exclamou alguém – Não há o que criticar.
De fato, nada ocorreu de anormal na primeira milha; depois, numa espécie de vantagem gradual, Callum principiou a destacar-se. Não era um patinador gracioso, mas tinha muito vigor e avançava mediante selvagens arremessos de suas pernas fortes.
Callum na frente! Distanciou-se 10 jardas! – bradava o guardião assistindo de binóculo.
- Dewar em segundo – bradou outra vez Colquhoun. – Os outros formam uma penca.
Assim continuaram durante outra milha. Depois aproximaram-se de Ardmurren, dirigindo-se para lá como um arco para um alvo. Estavam em longa coluna, agora, e os 6 zarparam, contornando a ilha. Uma espécie de suspiro, como um sopro de vento, irrompeu da multidão assim que os patinadores sumiram. Depois houve um brado de alento quando o primeiro homem reapareceu.
- Callum deu a volta primeiro! Callum vem na frente!
Ao meu lado Weir soerguia-se na ponta dos pés. Em seus bons tempos tinha sido um homem sangüíneo; pois bem, parecia púrpura agora. Gritou para mim:
- Reparou? Lang entrou bem na curva. Vem agora do lado de dentro, como aconselhei.
Distante, bem longe, Geordie – segundo pude ver – vinha em terceiro. A velocidade era demasiada para os restantes. Arrastavam-se atrás, a grande distância. Mas Geordie vinha bem, com fácil ímpeto de suas pernas esguias. Não havia dúvida que se tratava dum  patinador gracioso, esplêndido,
Durante o tempo todo a multidão se manteve em alvoroço; mas eu, a bem dizer, não me sentia excitado. Pesava-me qualquer coisa; não podia explicar o que fosse nem como me sentia, mas sem dúvida era certo receio e alguma apreensão.
Lá vinham eles, cada vez se aproximando mais. Na metade do percurso se podia ver, mesmo a certa distância, que Callum estava cansando. Dewar dera em forçá-lo, rente aos seus calcanhares. Dewar e Callum irrompiam, quase paralelos. Depois Callum começou a fraquejar. A multidão mantinha-se em febre, metade gritando o nome de Callum, outra metade instigando Dewar, tão empolgada com ambos que se esqueceu de Geordie. Mas o corregedor estava atento em Lang.
- Olhe para ele, repare só! – bradou-me. – Está vindo!
E indubitavelmente Geordie encompridava suas já longas pernas e vinha como uma rajada de vento.
O pessoal de Levenford principiou a fazer grande escarcéu, vociferando:
- Geordie! Venha!
Claro que Geordie não podia escutá-los, mas lá vinha;  e antes que se pudesse pestanejar, eis que ele passou tão depressa por entre Callum e Dewar que estes pareceram recuar distanciados dele que já estava a duas, cinco, dez mil jardas na frente. Sim, a uma milha de chegada ele se achava cerca de 20 jardas na dianteira.
- Geordie! Geordie Lang! – bramia a multidão, aplaudindo  aos gritos e atirando os bonés para o ar.
Pois, conforme já lhes disse e é a pura verdade, no meio de todo aquele berreiro eu sentia uma opressão desagradável. E quanto maior a gritaria, pior o meu mal-estar. Não sei dizer se acaso se tratava da idéia de Marta ou da expressão esquisita no rosto de Geordie; mas, e invoco o testemunho de Deus, eu sentia medo que alguma coisa medonha pudesse acontecer. E aconteceu mesmo.
A meia milha da chegada, quando Geordie já se encontrava bem na dianteira dos outros, de repente e sem aviso sobreveio um estrondo capaz de paralisar o coração da gente, um ruído pavoroso, semelhante ao estouro do Juízo Final e que interrompeu o alarido como se o cortasse de chofre.
Só Deus sabe o número infinito de história a respeito da quebra de gelo e submersão de patinadores; mas esta difere de tudo mais como inferno difere do céu.
Vi com estes meus olhos e a recordação me dá calafrios. O gelo rompeu-se e Geordie intrometeu-se na fenda como uma pedra. Um segundo antes adejava como um pássaro... no segundo imediato era sorvido por um buraco hiante que despejava água escura como fluido canceroso. Os outros, que viam atrás dele, desviaram-se como coisas amalucadas. Apenas Geordie foi sorvido.
Tudo isso aconteceu um segundo antes que pudéssemos respirar. Subiu da multidão uma espécie de arquejo, depois um lamento e por fim um grito de horror. O rosto sangüíneo de Weir ficou branco feito um sudário.
-Deus Onipotente! – bradou Colquhoun; atirou para trás a espingarda e saiu a correr por cima do gelo. Estabeleceu-se certo pânico, houve grande disparada na praia, porém alguns dentre nós seguiram o guarda.
Oh! Foi um caso terrível, horrendo! Quando atingimos o local não havia sequer sinal de Geordie e ao tentarmos chegar rente à orla quebrada principiou tamanha crepitação que o desmoronar apavoraria o coração mais intrépido. Veio gente da aldeia com cordas e uma escada, porém não conseguíamos ver indício ao menos de Geordie. Então Callum, que participara da corrida, arrancou fora os patins. Conhecia muito bem Geordie e estava desesperado de aflição. Exclamava:
- Hei de tirá-lo! Hei de tirá-lo!
Eis que amarraram uma corda em redor de Callum, após o que ele resvalou escada abaixo e se meteu pela água gelada adentro. Foi a coisa mais corajosa que já vi. Desceu uma, duas, três vezes. E na última, ao subir com o rosto lívido, rilhando os dentes, os cabelos empastados sobre a fronte, vinha com Geordie nos braços.
Jamais vocês ouviram um clamor como o que se ergueu então. E o mais angustiante foi ser um brado inútil. Geordie estava morto. Tentamos uma porção de recursos quando o estendemos no dique. Todas as coisas possíveis durante uma hora; porém tudo foi em vão. Ele deve ter triturado a cabeça contra o bloco de gelo na praia da enseada. Foi um negócio medonho e houve terrível lufa-lufa. Este dizia uma coisa, aquele propunha outra. Levantou-se uma celeuma contra Colquhoun que se responsabilizara pelos preparativos e arranjos e divulgara que a corrida era viável. O guarda ficou aflitíssimo e não cessava de jurar diante de mim, que naquela manhã mesmo tinha ido duas vezes até Ardmurren. Verdade, sim! Mas não pensou em rodear a ilha e voltar pelo meio, onde o gelo era mais tênue, compreendem? E o calor do sol dera cabo dele.
Ora, o que sucedeu sucedeu, não havia remédio. Muito menos havia tempo e lugar para lançar apodos. E eu, na qualidade de preboste, tinha direito de opinar. Reduzi-os ao silêncio, e a conclusão do que colocasse o corpo do pobre Geordie numa carroça da herdade, cobrindo-o com a devida consideração. Depois, com o cabriolé de Weir na frente, iniciamos o regresso a Levenford.
Santo Deus! Imaginem nosso percurso sacolejante à luz do sol, e se compenetrarão de quanto foi exaustivo e molesto o nosso trabalho. Eu e o corregedor não trocamos uma única palavra durante o trajeto de volta. Pois claro: tínhamos  que pensar agora em Marta, e no que ela iria dizer-nos. Não que eu temesse seu sofrimento. Não. Hoje já sou homem idoso, e posso falar franco. Temia era a negregada mordacidade de sua língua.
Quando nos aproximamos de Levenford, o céu estava nublado e uma chuva miúda nos atacou. Devem vocês calcular que minha missão não era do meu agrado, absolutamente; de modo que quando entramos na Rua da Igreja, meus olhos saltaram quando vi o pároco caminhando devagar pelas lajes. Era exatamente a hora habitual em que nos sábados ele se dirigia à tabacaria de Marta. Chamei-o alto assim que o vi, fazendo-o parar.
O pároco era um homenzinho de óculos, meio corcunda, sempre às voltas com seus livros, porém excelente criatura apesar de tudo, tanto no púlpito como fora dele. Não sabia tergiversar e logo viu ser do seu dever acompanhar-nos até a casa de Marta.
Ora, não sei fingir aquilo que não sou. Estava acabrunhadíssimo com o que havia visto na praia e não tinha estômago para aturar mais. Quando o pároco e eu entramos na botica, meu coração batia martelando minhas costelas.
Marta achava-se lá dentro, em pé atrás do balcão, à espera do filho que lhe desobedecera. Podia-se ver pela expressão de seu olhar que estava disposta a castigá-lo... não com relhos, mas com escorpiões. Vendo-nos juntos, desconfiou em sua cachola que viéramos implorar a respeito de Geordie. Bradou logo:
- Não adianta, ministro. Inútil vir rogar-me que o perdoe. Ele próprio traçou seu destino.
Percorreu-me um calafrio ao ouvir tais palavras.,
- Marta, ouça, mulher – disse o ministro com voz plácida. – Deve perdoar seu filho.
- Não o perdôo enquanto ele não se ajoelhar... enquanto não implorar meu perdão. – Seus olhos fitaram-no, dardejando. Mas o ministro não vacilou.
- Concito-a a perdoar seu filho – insistiu ele – Ou trata de fazer isso já ou se arrependerá pelo resto de seus dias.
Um repelão contraiu o rosto de Marta, que retrucou com veemência:
- Só depois de havê-lo castigado.
- Puni-lo é que noa fará – declarou o ministro com voz acabrunhada - ... pois está tudo acabado.
E em seguida contou o que havia sucedido.
Houve uma espécie de constrição no queixo de Marta, que ainda assim disse alto:
- Não acredito.  Está mentindo para assustar-me e livrá-lo. Hei de punir meu filho.
Mal estas palavras lhe saíram da boca, a porta se abriu. Os homens haviam chegado com a carroça e, ante a multidão que se juntara ali, ante a chuva e tantas outras coisas, acharam preferível largar lá dentro, sem demora, a carga que traziam.
Quando entraram, cambaleando um pouco, pois o peso era muito e o chão desigual, fiquei como se estivesse fulminado, sem conseguir tirar os olhos de cima de Marta. Num vislumbre ela vira tudo. Seu rosto estava como pedra, seus olhos pareciam feridas no meio daquela estranha lividez e sua expressão era a de uma mulher atônita. Não se moveu, absolutamente. Mesmo quando passaram por ela em direção à cozinha, Marta permaneceu rígida, de cenho preso na parece como se lutasse com a própria respiração. Eles estavam tentando levar o pobre Geordie para o quarto em cima, porém não conseguiam subir direito a escada. Foi então que ela de repente abriu os lábios, dizendo em voz alta e apontando para o sofá da cozinha:
- Deponham-no ali.
Colocaram-no onde ela ordenou.
- Agora deixem-me sozinha – exclamou com uma voz apavorante.
Deus do Céu! Afirmo-lhes que bem aliviado me senti em zarpar dali. O ministro foi o último a deixar a loja. Ficou parado durante algum tempo, a olhar para ela, ergueu o braço, depois o deixou cair, fez menção de falar mas permaneceu calado; finalmente saiu para a chuva.
Quem viu aquele São Silvestre em Levenford não o esquecerá. Pessoas andavam pelas ruas como se estivessem na igreja e falavam sussurrando. E quando passavam pela loja da rua da Igreja, não se atreviam a falar, absolutamente.
No Clube, aquela noite, éramos pouquíssimos. Conforme vocês sabem, sempre foi hábito entre os sócios assistir a entrada do Ano Novo de maneira pomposa, como estamos fazendo esta noite. Por uma vez tal costume se interrompeu. O mesmo ocorreu na cidade. Quando o relógio bateu as doze pancadas, expulsando o Ano Velho, recebendo o Ano Novo, não se viu outro único som. Nem de sinos, nem de trombetas, nem de coro na Encruzilhada... Apenas um silêncio mortal. E quando a última badalada se extinguiu, todos nós pusemos nossos capotões de três palas e fomos para casa.
Quanta umidade, tristeza e escuridão! Era um degelo interminável; enquanto íamos aos pulos ao longo da rua empoçada, ouvíamos o gotejar da água dos beirais e o escorrer da chuva como lágrimas ao longo das vidraças.
Éramos 4 ou 5, todos seguindo a mesma estrada e quando passamos pela esquina da Azinhaga Dobbie, vimos estreita barra de luz emergindo da escuridão. Não era uma luz clara e tépida que pudesse vir duma casa alegre e plácida; era uma luz pálida e frouxa. Sabermos que ela emanava da cozinha de Marta, tornava-a mais assustadora.
Estava conosco John Grierson, homem que não se deixava facilmente assustar, e ainda por cima um tanto sarcástico. Por escandaloso que parecesse, não houve quem o contivesse de ir até a janela dar uma espiada para saber o que se passava lá dentro. Assim, pois, muito a contragosto, o seguimos pela azinhaga abaixo e espreitamos aquela misteriosa janela.
Bem, o que vimos jamais vocês acreditarão, mas pelos Evangelhos, juro que é verdade. A peça estava imersa em sombras, mas a frouxa luz duma vela nos permitia ver Marta Lang andando dum lado para outro, feito criatura demente. Sim, era ela, embora fiando-me pelo hábito, não devesse reconhecê-la então: tinha uma expressão desvalida, como se houvesse caído em si mesma, e seus cabelos haviam tomado cor da neve em flocos. Retorcia as mãos como se estivesse lutando com alguma coisa e durante o tempo todo dizia entre lamentos o nome de seu filho Geordie.
A Bíblia estava aberta em cima da mesa da cozinha, e uma ou duas vezes ela fez menção de apanhá-la para ler. Mas não podia. Não podia, não!
Geordie! Geordie! – não cessava de exclamar alto. Até que se repente se voltou e se jogou de joelhos junto ao catre baixo. Passou um braço em redor do pescoço do filho morto, de maneira que a cabeça dele revirou e pendeu como a cabeça duma criança sobre o peito murcho da mãe; e com a outra mão, principiou a acariciar-lhe a face fria e rija e a alisar-lhe os cabelos.
O rosto do defunto, batido pela luz da vela, olhava para cima com um esgar de fantasma que horrorizaria vocês. Marta, sim, Marta Trigueira, começou a embalar-se para frente e para trás sobre os joelhos, desesperada de aflição.
- Geordie! Geordie! – bradava em tom desesperado – Jamais vim a saber, como sei agora, quanto o amava, meu filho! Mas amei-o sempre, sempre.
E não parava mais.
Nenhum de nós mexeu mão ou pé. Arraigados ali no chão estávamos, tamanho medo e dó. Por entre o gotejar da chuva vinha aquele som esquisito e oscilante que nunca esquecerei enquanto for vivo. Ahn! Era o tétrico arfar dos soluços de Marta.
 

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