A abelha comia a geléia de groselha da torta. Com uma pressa
metódica e glutona, a cabeça abaixada, as patas viscosas,
quase desaparecendo numa pequena depressão rósea, transparente.
Espantava-me de não vê-la inchar, engordar, ficar redonda
como uma aranha...
E a minha amiga não chegava, essa minha amiga tão gulosa,
aquela que freqüentemente vem petiscar algo em minha casa porque me
sabe seduzir com suas pequenas manias, porque sei escutar as suas futilidades,
porque raramente sei estar de acordo com ela... comigo sente-se repousada;
muitas vezes mo afirma, com um certo ar de gratidão, que eu não
sou suficientemente coquete, que nunca examino com um olhar agressivo e
feminino, seu chapéu ou seu vestido... Não se manifesta quando
falam mal de mim na roda de suas outras amigas; por vezes chega mesmo a
exclamar: “Ora, filhas, Colette é meio excêntrica, concordo,
mas não tanto assim como vocês a pintam”. Enfim, ela gosta
de mim.
Experimento, ao contemplá-la, esse sentimento apiedado e irônico
que é uma das formas da amizade. Jamais se viu uma mulher mais loura,
mais branca, com mais roupa e chapéus do que ela! O matiz dos seus
cabelos, de seus cabelos verdadeiros, parece hesitar suavemente entre a
cor da prata e do ouro; seria necessário mandar vir da Suécia
a cabeleira anelada de uma garotinha de seis anos, se acaso minha amiga
desejasse usar os cachos artificiais e regulamentares de nossos chapéus.
Sob esta coroa de um metal tão raro, minha amiga, para evitar o
amarelado da tez, espalha sobre o rosto um pó cor-de-rosa; e os
cílios, enegrecidos com um pincelzinho protegem um olhar vivo, um
olhar cor de cinza, âmbar, talvez marrom, um olhar que sabe pousar-se
terno e ávido, sobre pupilas masculinas, também essas ávidas
e ternas.
Assim é minha amiga; e teria contado já tudo o que sei
acerca dela, se não me faltasse acrescentar que se chama inteligentemente
Valentine, dada a atual moda de diminutivos breves, e em que os pequeninos
nomes de mulher – Tote, Moute, Loche -, tem sonoridades de soluço
mal retido...
“Ela esqueceu”, pensava pacientemente. A abelha adormecida ou morta
de congestão, afundava-se, de cabeça para baixo, na deliciosa
depressão... Ia reabrir meu livro quando a campainha soou e minha
amiga surgiu. Num rodopio, enrolou a saia muito larga em torno das pernas
e deixou-se cair a meu lado, a sombrinha atravessada nos joelhos, num gesto
sábio de atriz, de manequim, quase equilibrista; um gesto cuja perfeição
ela consegue sempre alcançar todas as vezes que o tenta...
- Bonita hora para se comer! O que é que você andou fazendo?
- Nada querida! Você é espantosa, você que vive
apenas para o seu cachorro, a sua gata e os seus livros! Ou você
acredita que Lelong consegue me fazer uns amores de vestidos sem que eu
os prove primeiro?
- Vamos, coma e cale-se. Isso? Não, não é nenhuma
porcaria. Apenas uma abelha. Imagine que ela abriu sozinha esse pequeno
poço. Fiquei olhando para ela; comeu tudo isso em vinte e cinco
minutos.
- Como você pôde ficar olhando? Você é
tão sem graça! Não, obrigada, não tenho fome.
Não, também não quero chá.
- Então posso mandar trazer um licor?
- Se é por minha causa, não vale a pena... Não
tenho fome, já lhe disse.
- Então, é porque você já comeu noutro lugar,
sua chatinha...
- Palavra que não! Estou meio chateada, não sei o que
tenho...
Espantada, ergui os olhos para o rosto da minha amiga o qual eu ainda
não conseguira isolar de seu insensato chapéu, grande como
um guarda-chuva, e donde se levantava uma vasta espiga de plumas, um chapéu
fogo de artifício, fonte luminosa de Versalhes, um chapéu
tão gigantesco que teria premido a cabecinha de minha amiga até
os ombros, não fossem os famosos cachos artificiais louros como
a Suécia. As faces cobertas de um pó róseo, os lábios
vivamente pintados, e os cílios esticados compunham sua fresca e
pequena máscara habitual; mas algo, lá por baixo, me parecia
modificado, extinto, ausente. Numa das faces onde o pó era mais
escasso, um sulco traiçoeiro guardava o nácar, o verniz de
lágrimas recentes.
Esta mágoa maquilada, esta mágoa de boneca corajosa comoveu-me
de repente, e não pude conter-me em abraçar minha amiga pelos
ombros, num movimento de solicitude muito raro entre nós.
Ela inclinou-se para trás, enrubescendo sob o rosado pó,
mas não teve tempo de refazer-se e foi em vão que tentou
reter os soluços.
Um minuto mais tarde estava chorando, enxugando o interior das pálpebras
com a ponta de um guardanapo. Chorava com simplicidade, tendo o cuidado
de não manchar de lágrimas seu vestido de crepe da China,
de não sujar a pintura do rosto; chorava cuidadosamente, higienicamente,
pequena mártir da maquiagem...
- Posso ajudá-la em alguma coisa? – perguntei-lhe docemente.
Ela fez “não”com a cabeça, suspirou, trêmula, e
estendeu-me sua xícara que enchi de chá mais que frio...
- Obrigada – murmurou – você é muito gentil... peço-lhe
perdão, estou nervosa.
- Pobrezinha! Você não quer me contar?
- Oh, meu Deus, sim. Não é nada especial. Ele não
gosta mais de mim.
Ele... seu amante! Nunca pensara nisso. Um amante, ela? E quando? E
onde? E quem? Poderia este manequim ideal despir-se todas as tardes, para
um amante? Uma tal sucessão de imagens extravagantes passou por
meus olhos que só pude afastá-las, exclamando:
- Ele não gosta mais de você? Não é possível!
- Oh, sim... Uma cena terrível... (Abriu seu estojo d’ouro,
espalhou o pó, enxugou os cílios com um dedo úmido).
Uma cena terrível, ontem...
- Ciúmes?
- Ele, ciúmes? Antes fosse! Estaria bem mais contente. Como
ele é mau... Me censura tanto... E eu nada posso fazer, nada!
E baixou a cabeça amuada, o queixo colado ao colo alto:
- Enfim, você será o juiz! Um rapaz delicioso, nunca nos
zangamos nestes seis meses, nem uma discussão, nada! Algumas vezes
ficava nervoso, mas como é artista...
- Ah! Ele é artista?
- Pintor, minha querida. E pintor de muito talento. Se eu pudesse dizer
o seu nome, você ficaria muito surpreendida. Fez vinte esboços
de mim, de chapéu, sem chapéu, com todos os meus vestidos!
É de uma graciosidade, de um vaporoso... O movimento das saias é
maravilhoso.
Recobrava o ânimo, lentamente, seu pequeno nariz brilhando de
lágrimas mal enxutas e de um resfriado mal curado... os cílios
tinham perdido a goma negra e seus lábios, o carmim. Sob o grande
chapéu elegante e ridículo, sob os cachos postiços,
descobri pela primeira vez uma mulher, não muito bonita, mas de
maneira alguma feia, insípida, se quiserem, mas tocante, sincera
e triste.
Seus olhos ficaram subitamente vermelhos.
- Mas... o que é que aconteceu? – arrisquei.
- O que aconteceu? Nada. Querida, posso dizer-lhe que nada! Ontem recebeu-me
com uma expressão meio vaga... um ar de médico... De repente,
ficou amável e disse-me: “Querida, tira o chapéu. Vou reter-te
aqui até jantarmos, queres? Prender-te para toda a vida se quiseres!”
Era justamente este chapéu, e você sabe que é uma coisa
terrível tirá-lo e pô-lo...
Eu não sabia, mas diz que sim com a cabeça, compenetrada.
- Fiz beicinho. Ele insistiu. Consenti, e comecei a tirar os alfinetes
e um dos cachos postiços ficou preso no chapéu; foi isso,
apenas. Pouco me importava; todo mundo sabe que eu tenho cabelo, e ele
melhor do que ninguém! Mas corou, e desviou o rosto. Voltei a colocar
o cacho como uma flor, abracei o meu querido pelo pescoço e segredei-lhe
que o meu marido estava viajando na região de Dieppe, e que... você
compreende! Ele não dizia nada. Depois jogou fora o cigarro e foi
aí que tudo começou. O que ele não me disse! O que
ele não me disse!...
E a cada exclamação ela batia nos joelhos, num gesto
vulgar e desencorajado, como minha arrumadeira quando me conta que
seu marido lhe deu mais uma surra.
- Disse-me coisas incríveis, querida! Às vezes parava,
e depois começava a andar, e sempre falando... “Não estou
pedindo outra coisa, minha querida, do que passar a noite contigo... (o
cínico!) mas eu quero... quero aquilo que me devias dar e que nunca
me poderás dar!
- Mas o quê, Santo Deus?
- Espere, você já vai ver... “Eu quero a mulher que tu
és neste momento, a graciosa, a delgada, a pequena fada coroada
por um ouro tão suave e tão abundante que sua cabeleira lhe
atinge quase os supercílios. Eu quero essa tez de fruto maduro,
e esses cílios paradoxais, e toda essa beleza anglicana. Quero-te,
tal como és, e não aquela que a noite cínica me entregará.
Porque tu transforma-te – bem o sei! – transforma-te num ser conjugal e
insípido, sem a coroa desses cabelos ondulados, esses cabelos marcados
pelos ferros, e agora lisos, enrolados em tranças. Sem saltos, transforma-te
numa mulher pequena; com os cílios murchos, com o rosto lavado,
sem pó, transforma-te numa mulher serena, segura de si mesma, e
eu sinto-me estupefato diante dessa outra mulher!...
“E no entanto tu sabias disso – gritava ele – tu sabias! A mulher que
desejo, tu, aquela que és neste momento, nada tem em comum com essa
pobre e simples coitada que todas as noites surge de teu quarto de toalete!
Com que direito me subtrais a mulher que amo? Se és ciosa de meu
amor, como ousas afrontar o que amo?”
- O que ele não disse, o que não disse! Eu não
me mexia, fiquei olhando para ele, sentia arrepios de frio... Não
chorei! Você sabe, não podia chorar diante dele.
- Fizeste bem, querida; como foste corajosa!
- Muito corajosa – repetiu ela, baixando a cabeça. – Assim que
pude, dei o fora... Ainda escutei outras enormidades sobre a s mulheres,
sobre todas as mulheres; sobre a “inconsciência prodigiosa das mulheres,
o seu negligente orgulho, o seu orgulho de estúpidas que intimamente
pensam que tudo aquilo que dão é sempre demais para o homem...”
O que você teria respondido? Diga-me.
- Nada.
Nada; é verdade. Que dizer? Estou quase concordando com ele,
o homem grosseiro e exaltado... A razão está quase com ele.
“Tudo aquilo que dão, é sempre demais para o homem!” Elas
não têm desculpa. Elas deram ao homem todos os motivos para
fugir, enganar, odiar, trocar... desde que o mundo existe, elas impuseram
ao homem, sob todos os disfarces, uma criatura inferior àquela que
ele desejava. Elas enganam-no com despudor, neste tempo em que as cabeleiras
artificiais, os corpetes cheios de truques, fazem de uma coisinha picante
e feia uma “baixinha tentadora”.
Ouço falar minhas outras amigas, contemplando-as, e por sua
causa fico confusa. Lilly, a encantadora, esse pajenzinho de cabelos curtos
e frisados, impõe a seus amantes, desde a primeira noite, a nudez
de seu crânio congestionado de caracóis marrons, caracóis
oleosos e imundos dos bigoudis. Clarice, enquanto dorme, preserva a pele
do rosto com uma camada de creme de pepino; e Annie arrepia os cabelos
à chinesa, segurando-os com uma fita. Suzanne unta seu colo delicado
com lanolina, e enfaixa-o com velhos panos usados... Minna jamais se deita
sem os seus cremes destinados a retardar o advento de rugas nas faces e
no queixo, e sobre cada têmpora coloca uma estrela de parafina...
Ao notar minha indignação, Suzanne encolhe os ombros
engordurados e diz-me:
-Por acaso pensas que eu vou estragar a pele por causa de um homem?
Não tenho outra pele de reserva. Se ele não suporta a lanolina,
que dê o fora. Não forço ninguém. E Lilly declara,
impetuosa: “Para começar, não fico feia de bigoudis. Até
pareço uma menina de cachos numa distribuição de prêmios”.
Minna responde a seu amante, quando ele protesta contra o uso de cremes:
“Queridinho, não sejas bobo. No Jockey ficas até muito contente,
quando alguém comenta atrás de ti: “Essa Minna conserva eternamente
o rosto oval de virgem!” E Jeannine que dorme com uma cinta para emagrecer?
E Marguerite que... não, isso eu não posso escrever!
Minha pequena amiga, deslavada e triste, percebeu obscuramente meus
pensamentos e adivinhou que eu não estava muito penalizada com a
sua sorte. Protestou:
- E isso é tudo o que você me diz?
- Queridinha, que quer você que eu lhe diga? Creio que nada está
perdido, e que o seu apaixonado pintor amanhã, ou talvez esta noite,
voltará a bater à sua porta...
- Quem sabe ele já telefonou? Ele não é mau, no
fundo... um pouco louco, uma crise, não é verdade?
Levantou-se, iluminada pela esperança.
E eu respondi “sim” a cada uma de suas perguntas, cheia de boa vontade
e com o desejo de satisfazê-la... Olhei afastar-se pelo passeio,com
seu passinho curto exigido pelos saltos altos... Na verdade, talvez ele
a ame... E se ama, chegará a hora em que, apesar de todos os cosméticos
e fraudes, ela tornar-se-á para ele, a presença sedutora,
a helênica pagã de cabelos soltos, a ninfa de pés intatos,
a bela escrava de quadris redondos, nua como o próprio amor...