Pouco a pouco, desuniram-se. Por quê? Por nada. O amor não
dura sempre; estar muito tempo de acordo cria a necessidade impetuosa de
quebrar todos os laços. Veio uma discussão e tudo se partiu.
- Adeus! – gritou Jeanne.
- Boa tarde! – zombou Gérard.
Ela foi embora, abafada no lencinho de pescoço, com duas lágrimas
teimosas escapando. E o operário, encostado à parede, seguiu-a
com um olhar de ódio e vitória.
À tarde, ninguém o esperava à saída da
oficina; deu um suspiro feliz. Quando penetrou no pátio do número
23, na extremidade da longa avenida, esfregou as mãos, satisfeito.
Atravessou o alpendre, sustentado por um esqueleto de traves, caminhou
ao longo da curta ruela, com três degraus que conduziam a uma porta
vidrada.
Penetrou no quarto, onde tantas vezes se tinham refugiado para dizer
coisas magníficas. Mirou o grande deserto da pequena casa. Andou
aos tropeções no meio das sombras em que tantas vezes mergulharam.
- Tanto melhor! – repetia ele incessantemente, torcendo o delgado bigode
com a mão grossa que o trabalho do dia tornara cinzenta... – Tanto
melhor!
Todavia, o seu caráter azedou-se. Sentiu-se nervoso, teve bruscos
e ruins ataques de cólera. Quase ia estrangulando Bido, por motivos
fúteis, junto do quiosque pontiagudo, à esquina da rua dos
Turcos. Discutia política com aspereza e má-fé.
- Que houve contigo, Gérard? – perguntava a si mesmo.
A tia Lea, porteira do 23, que de tempos a tempos abria a porta vidrada,
desejosa de dois dedos de conversa, escutou o rumor público e quis
interrogá-lo. Mas desistiu, vendo-lhe a cara sombria.
Gérard deixou de ir ao café e passava as horas livres
no quarto de quase viúvo. Todo ele se concentrava na triste claridade
vinda da porta. Parecia esperar alguém.
Esperava por ela. Como poderia Jeanne viver noutro lado? Não,
era impossível que não voltasse – pelo menos uma vez.
Os móveis que ambos tinham comprado, o guarda-louça vermelho
e reluzente, a mesa coberta com um oleado, indicavam um vazio, precisavam
dela. E até os pássaros, na gaiola, estavam tão abandonados
como crianças sem mãe.
Obstinou-se em esperar, punhos nas têmporas, não compreendendo
a duração daquela ausência, a teimosia da exilada.
À noite, nem acendeu a luz, preferindo abismar-se no negrume do
quarto.
Passaram uma, duas semanas. Jeanne não saía do desconhecido.
Ele perguntava a um e a outro onde ela estava, que fazia, procurava informar-se,
tentando provocar um encontro. Davam-lhe mil detalhes contraditórios.
Na verdade, ninguém sabia de nada.
Desesperançado, nunca mais falou aos outros. Achou melhor dirigir-se
diretamente a ela, isto é, esperá-la com doçura, sem
nada fazer.
Numa noite – a última de fevereiro – deitado num canto como
um nicho, Gérard viu-a aparecer, perto das onze horas ou meia-noite.
Jeanne entreabriu-lhe ligeiramente a porta. Deslizou no quarto. Mal
era visível, envolta em roupas vaporosas, mostrando um rosto de
um branco acinzentado de pérola. Parecia a tarde no seio da noite.
Avançou até ao meio da casa, e aí, hesitante,
oscilou. Estava direita, mas vaga, e não se lhe via os pés
tocando o soalho.
Aproximou-se dos móveis, abriu a gaveta do guarda-louça
onde guardava as cartas, e debruçou-se. Ouviu-se o folhear de papéis...
depois, voltando-se, deu dois passos, ergueu a cabeça e contemplou
a gaiola e o ninho onde se acaçapavam três avezinhas, ainda
tão mal desabrochadas que as suas asas assemelhavam-se a minúsculos
braços. Desprendeu a gaiola, e pô-la em cima do rebordo da
janela, para melhor examinar.
Gérard sustava a respiração, empolgado pelo milagre
do regresso. Mas, pouco a pouco, aos solavancos, ergueu-se. Pôs-se
de pé, num esforço mais brusco, e dirigiu-se à mulher,
cambaleando e de braços estendendidos. As mãos atravessaram
o frágil vulto. Chamou Jeanne. A sua voz não atingiu a aparição.
Não o ouvia, como um anjo não o ouviria também. Deslocava-se
frágil, desvanecia-se ao seu contato. Ela estava só, e ele
também estava só.
- Meu Deus!
Compreendeu que sonhara acordado; gemeu vencido. Deixou-se cair num
banco, num canto da mesa, e apoiou os cotovelos no oleado. Encostou a cabeça
aos braços dobrados, adormecendo sem sonhos, com a segura tranqüilidade
dos mortos.
Ao acordar, era já manhã alta: quase meio-dia. Lá
fora havia luz, chuva e lama.
Sim, com certeza ela tinha vindo! Esfregou os olhos e logo sorriu.
A porta envidraçada abriu-se, e a tia Lea exibiu seu rosto toscamente
talhado. Saindo do seu entorpecimento, Gérard olhou-a
- Jeannette voltou esta noite.
- Moço, não pode ser! – exclamou a porteira. – Ela não
voltou; não abri a porta a ninguém esta noite.
A velha levantou os olhos e os braços, deixando-os cair em seguida,
num ar de apiedado protesto contra a insensatez do sobrinho, que via pessoas
onde não existiam.
Quando a tia partiu, Gerard observou todos os cantinhos. Ruminou as
palavras decisivas da porteira. De súbito, lembrou-se da inconsistência
do fantasma... Não, Jeanne no tinha voltado. Fora um sonho!
Deu alguns passos no quarto, mal iluminado pelo dia cinzento. De repente,
entrecerrou os olhos.
- Ah! – balbuciou.
A gaveta das cartas, de ordinário sempre fechada, estava aberta;
as cartas jaziam em desordem, e uma delas, à beira, ia tombar. A
gaiola, que na véspera pendia do gancho, repousava sobre o peitoril
da janela... além, um enfeite de plumas brancas engrinaldava o espaldar
de uma cadeira. O enfeite que não via desde a separação,
que tinha ido – ido com ela.
E mais ainda. Aspirando a humilde atmosfera do quarto, Gérard
sentia o perfume que o embalsamava. Pois não seria o odor de rosas,
de Jeanne? Sim, era...
Baixou os olhos, emocionado. Viu nos ladrilhos vestígios de
passos, desenhados por sapatinhos que patinharam na lama da rua. Ele ria
e chorava.
- Jeanne regressou! Eu bem a vi! Voltaremos a viver juntos!
O homem tivera, sem dúvida, uma alucinação...
contudo, a mulher tinha realmente vindo. Mas não no momento em que
ele a supôs ver. Jeanne veio depois, durante a manhã chuvosa,
enquanto dormia, cego e surdo. A visão foi apenas uma ilusão;
mas foi uma loucura cheia de verdade, visto que Jeanne regressou para tocar
suas coisas, falar baixinho com suas cartas, examinar a gaiola, perfumar
o quarto com um ramo de flores, - anunciando que desejava ressuscitar.