Aventuras do Barão de Munnhausen
 
A corneta que parecia encantada e engendrava o microfono
Aventuras do meu ginete Demônio
O meu sobretudo hidrófobo
Como cavalguei gramados e sai de um pântano
Façanhas da minha Diana
Como apanhei boa cópia de patos, graças a minha presença de espírito
A enfiada de perdizes e a raposa esfolada viva
A cerejeira exótica
 
 
A corneta que parecia encantada e engendrava o microfono

Não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe. A guerra com os turcos chegou ao seu fim, e na ocasião da troca de prisioneiros, recuperei a liberdade e voltei para a Rússia, sem q me tivesse sido possível descobrir onde parava o meu precioso cavalo Demônio.
A perda deste bom animal obrigou-me a viajar pela posta, locomoção pela qual sentia uma profunda aversão pelos motivos já expostos no primeiro capítulo destas verídicas memórias.
O inverno ia muito frio, e nós, passageiros, no interior da sege bem calafetada, apesar da abundância de peles de ursos e das boas provisões de vodca, mal sabíamos se nossos corpos eram de carne e ossos ou de pedaços de gelo.
Nestas condições, chegamos a um ponto em que a estrada se estreitava tanto entre duas sebes de espinhos que só dava lugar a um único veículo. Aconselhei ao postilhão que na sua corneta tocasse um bom sinal de prevenção para evitar um encontro intempestivo. O homem pôs o instrumento na boca e soprou, soprou a ponto de encher as bochechas tanto que se parecia com a cara do deus Eólo, como se o vê estampado nos compêndios de mitologia; mas em vão! Nenhum som saía da malfadada corneta. Este fenômeno singular e inexplicável, teve por conseqüência que, no meio de tal caminho apertado, topássemos com outra sege, que vinha de encontro a nossa.
Não se podia nem passar, nem recuar, e creio que teríamos permanecido ali até que o frio nos tivesse petrificado, se não fosse a boa inspiração que tive.
Desprendi os nossos cavalos, pus nos ombros a sege, com passageiros e bagagem, e saltei assim por cima da sebe de espinhos para o campo vizinho. Afianço aos meus amigos leitores que a empresa não foi fácil, à vista do peso da carga e da altura da sebe, que media bem os seus nove pés.
Voltei e agarrei os cavalos, que transportei do mesmo modo para o outro lado do obstáculo; mas cumpre-me declarar que quase sucedeu um acidente, porque um dos cavalos, muito novo e pouco amestrado, durante o salto começou a espernear horrivelmente; por felicidade lembrei-me de agarrar-lhe as pernas e de metê-las na algibeira do meu casacão e assim consegui vencer a dificuldade.
A outra sege continuou o seu caminho, e eu tive o trabalho de tornar a colocar a nossa na estrada, o que aliás foi muito fácil, porque o primeiro exercício já me tinha amestrado.
Por fim de contas chegamos ao hotel em que devíamos passar a noite. Apressadamente nos agrupamos ao redor do fogo, e o postilhão pendurou a corneta rebelde perto da chaminé. Pouco a pouco sentimos o bem-estar provocado pelo calor benfazejo, e nos pusemos a contar histórias interessantes enquanto não vinha a ceia.
Mas, outro efeito do calor, e bem maravilhoso, tivemos de presenciar.
De repente a corneta pôs-se a tocar tudo quanto o postilhão, à força de pulmões, havia lhe metido no bojo, e que na ocasião não pôde sair, porque o frio excessivo enregelara os sons, que agora ao calor do fogo se derreteram e vibraram alegremente!
Esta aventura mais tarde foi aproveitada por um certo Edison que, baseado naquele processo, inventou o microfono, o que prova que tudo quanto me refiro nessas memórias, por inadmissível que seja, descansa em leis naturais e nunca se afasta da verdade.

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Aventuras do meu ginete Demônio

Não tardamos muito em entrar em ação, e os meus esforços foram coroados do melhor êxito contra os infiéis.
Como é natural, a honra nas vitórias cabe sempre ao general em chefe, a nós outros subalternos apenas cumpre seguir à risca as ordens dadas e zelas pelo fiel desempenho dos deveres militares. Nada diria, pois, desta campanha gloriosa, se não tivesse recaído em mim o mando de um esquadrão de hussardos, destacado nas linhas avançadas, de modo que adquiri uma espécie de autonomia, repassada de imensa responsabilidade. Mas – quem muito pode, muito deve, foi sempre a minha divisa, e, apesar de minha proverbial modéstia, posso asseverar que soube a todo tempo mostrar-me na altura do encargo.
Um dia, havendo derrotado os turcos, obrigando-os a retirar sobre a cidade de Orzakoo, a impetuosidade do meu cavalo quase me pôs em lençóis de onze varas.
Parte da retaguarda do inimigo, em um arranco de heroicidade, voltou à ofensiva, oferecendo-nos uma resistência tenaz; como o inimigo viesse envolto em densa nuvem de pó, para combater com armas iguais, mandei a minha gente repartir-se dos dois lados, e levantei igualmente uma grande poeirada; fiquei eu só a atacar no centro, sem importar-me com quem me vinha ao encontro. O estratagema surtiu efeito: batemos os infiéis, que se puseram em completa debandada, em busca de sua fortaleza protetora. Graças à velocidade do meu Demônio, eu ia à frente de todos na perseguição dos fugitivos, e tive o prazer de ver que o inimigo, tomado de um susto aterrador, nem sequer parou na praça, e fugiu logo pela parte oposta àquela pela qual entrara. Julguei então prudente aguardar a minha gente, e como o meu cavalo devia estar atormentado pela sede, toquei-o para uma fonte que marulhava no meio da praça, para dar-lhe de beber. O pobre do animal sorveu o líquido a longos tragos incessantes, sem dar mostras de satisfação. Pudera não! De repente ouvi atrás de mim a bulha de uma cascata, e voltando a cabeça, compreendi a insaciabilidade de Demônio.
Faltava-lhe todo o traseiro, ancas e pernas, tudo cortado como por hábil golpe de navalha: a água que o pobre bruto bebia, imediatamente saía por de trás em borbotões impetuosos.
Neste comenos chegou o meu picador, e, depois de ter-me felicitado pela vitória esplêndida, explicou-me que Demônio ficara privado da parte que lhe faltava. Na ocasião em que perseguia o inimigo, de repente baixaram a grade da porta da cidade, que, ao cair, apanhou a anca do meu cavalo, e dividira o quadrúpede em duas secções bípedes. A parte traseira, com verdadeiro furor, lançava coices formidáveis aos soldados inimigos que, cegos de medo, vinham correndo em busca da entrada da cidade, e, depois de haver-lhes causado grandes prejuízos, retirou-se satisfeita para um prado próximo, onde se pôs a pastar tranqüilamente.
Compreenderá o amigo leitor que ansiosamente corri com a secção do cavalo que me restava ao tal prazo, onde, com grande alegria, encontrei a outra secção, viva e bem disposta.
Mandei chamar imediatamente o ferreiro do meu esquadrão, que, sem hesitar, coseu as duas metades com brotos de louro, única coisa que achou à mão. A ferida sarou felizmente, mas, sobreveio uma particularidade que só podia dar-se em um cavalo tão extraordinário como o meu Demônio. Os brotos de louro criaram raízes, cresceram e formaram na anca do cavalo um caramanchão, na qual muitas vezes gozei de excelente sombra nas minhas excursões posteriores.
Resta-me referir um pequeno incômodo que colhi naquela refrega. Com tal força, e tão incessantemente tinha descarregado no inimigo os meus panasios certeiros, que o braço direito adquiriu um movimento automático, e continuava a dar, a dar, quando o inimigo já ia longe. Para não me ferir a mim mesmo nem à minha gente, vi-me obrigado a mandar atar-me o braço ao peito, e a conservá-lo assim durante quinze dias, tempo necessário para acalmar o ímpeto nervoso.

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O meu sobretudo hidrófobo

Certa vez, numa rua de São Petesburgo, fui atacado por um cão hidrófobo. Como não poderia deixar de acontecer, o único recurso ali era fugir, o que fiz em regra, tendo o cuidado de abandonar o meu sobretudo ao animal raivoso, para detê-lo em caminho.
Mais tarde mandei recolher por meu criado esta parte do meu vestuário, e não me teria mais lembrado do incidente se não tivesse sobrevindo uma das mais extraordinárias aventuras.
Estava eu, dias depois, a redigir minhas memórias quando o meu criado entrou todo espavorido no meu gabinete, tremendo como varas verdes.
Ah! Meu amo! – exclamou depois de recuperar o fôlego – o seu sobretudo enlouqueceu!
No primeiro momento suspeitei que a vodca estivesse trabalhando na cachola do meu criado; mas tendo chegado ao gabinete que me servia de guarda-roupa, vi, com efeito, grande parte dos meus trajes rasgados e despedaçados pelo chão, pilhando o meu sobretudo em flagrante instante em que inutilizava meu belo uniforme de gala!
É que o sobretudo, abandonado por mim na rua, fora mordido pelo cão danado, colhendo o vírus rábico e a subsequente hidrofobia.
Para evitar maiores desgraças foi preciso mandar queimar o malfadado sobretudo.

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Como cavalguei gramados e sai de um pântano

Se os meus leitores não conhecessem as minhas façanhas eqüestres, não me animaria a contar os casos seguintes que, realmente, têm alguma coisa de maravilhoso. Estávamos nós sitiando uma fortaleza, já não me lembro do nome que tantas foram as que obriguei a render-se, - quando ouvi o general dizer que daria qualquer coisa para saber o que estava se passando no interior das fortificações. Resolvi, imediatamente, satisfazer este legítimo desejo.
Mas a coisa era difícil. Tão numerosas eram as sentinelas nos postos avançados, as guardas nos baluartes que só um pássaro poderia passar desapercebido. Obstáculos, porém, nunca me detiveram quando algum projeto me preocupava.
Coloquei-me ao lado de um de nossos canhões, e no momento que saía a bomba, montei no projétil para que me levasse ao interior da cidade.
A meio caminho, porém, ao voar assim pelos ares, despertaram-me certas objeções.
- Não há dúvida – dizia com meus botões – não há dúvida que penetrarei na cidade; mas como sairei dela depois? Posso cair nas mãos dos inimigos e estes mandarão me enforcar como espião. Nada: não apeteço terminar minha carreira assim.
Resolvi-me de pronto. Desenhando a toda pressa a planta das fortificações sitiadas, aproveitei uma bomba inimiga que vinha voando ao meu encontro e, saltando nela com minha bem conhecida perícia, voltei são e salvo ao nosso acampamento.
Tão ágil como eu em saltar era também meu cavalo.
Um dia vínhamos cortando campos a correr, quando uma carruagem, que seguia pela estrada geral, ameaçou interceptar-nos o caminho. Felizmente as duas janelas estavam abertas. Sem hesitar, fiz saltar o meu Demônio através dela, que transportava duas moças formosas, e tão impetuoso foi o movimento que mal tive tempo de tirar o chapéu e pedir desculpas pelo meu trajeto.
Noutra ocasião quis passar um pântano, que não me parecia de todo infranqueável. Formei o salto , mas já no ar vi que não alcançaria o outro lado e, dando volta, recolhi-me ao ponto donde partira. Uma segunda tentativa não foi mais feliz; caí na lama, já perto da beira oposta. Meu cavalo foi afundando nas águas lodosas, e vi o momento em que ambos morreríamos afogados. Para escapar à sorte tão triste, tomei as rédeas entre os dentes, agarrei a cauda da minha cabeleira e fui puxando, puxando, até que ambos, eu e meu cavalo, nos achamos em terra firme.

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Façanhas da minha Diana

Com grande valor e presença de espírito, sempre soube aproveitar as boas oportunidades, mas nem por isso deixava de rodear-me de bons auxiliares. Não só dispunha de excelentes armas, construídas por grandes mestres, mas empenhava-me em adquirir os melhores cães de fina raça, para assegurar o sucesso de minhas caçadas.
Entre estes primava Diana, cadela perdigueira, animal tão extraordinário que merece passar à posteridade.
Quanto a fino faro nunca teve o seu igual.
Um dia, tendo entrado com ela num hotel, vejo-a amarrada diante de uma mesa, com a pata direita alçada o que, como se sabe, indica a presença de aves de caça. Entretanto, sobre a mesa havia apenas um papel. Apanhei-o e vi que era a lista de comidas e, entre estas vinha anotada “perdiz com molho de vinho”. Foi bastante essa indicação para despertar o maravilhoso instinto da minha Diana.
Mas, não parou nisso. Horas depois, voltando à mesma sala, Diana ainda foi direitinha à tal mesa, ergueu o focinho, farejou e, sacudindo a cauda, retirou-se em paz. Lá estava ainda a lista, mas... a perdiz havia sido riscada, por ter-se esgotado a provisão.
A minha Diana servia-me indistintamente, dia e noite. Ao anoitecer dependurava-lhe na cauda um lampião e caçava com a mesma facilidade como se fora dia claro.
Uma vez, pouco antes do meu casamento, a minha mulher mostrava desejos de acompanhar-me em uma das minhas caçadas. Segui na ponta para descobrir alguma boa presa e, ao cabo de poucos momentos, a minha Diana amarrou um povo de mais de cem perdizes. Aguardei então minha mulher, que com meu alferes e um criado, tinha perdido logo depois de mim; mas esperei em vão: ninguém aparecia.
Fiquei inquieto, e voltei; pelo caminho ouvi uns gemidos que me pareciam sair da terra. Apeei-me, encostei o ouvido no chão, e distingui perfeitamente as vozes de minha mulher, do meu alferes e do meu criado,que ressoavam no subsolo. Ao mesmo tempo descobri o orifício de um poço de minas de carvão, e já não podia ter dúvidas: minha comitiva tinha caído neste poço.
Corri à aldeia vizinha e encontrei grande número de meninos, que acudiram com cordas e escadas e graças aos nossos esforços conseguimos tirar todos. Acaso feliz; nem a gente, nem os cavalos haviam sofrido, a não ser o grande susto.
Bem se vê que, por aquele dia, não havia mais que pensar em caça; e como o amigo leitor sem dúvida alguma, já se esqueceu da minha Diana, não há de estranhar que naquela ocasião também eu dela esquecesse.
No dia seguinte o serviço me obrigou a uma diligência que me tomou três semanas. De volta, porém, dei por falta de Diana. Ninguém havia pensado nela, porque todos pensavam que ela me havia acompanhado. É escusado dizer quanto me afligiu a ausência do excelente animal.
Por fim sobreveio-me a lembrança que Diana bem podia estar ainda amarrando o povo de perdizes. A esperança deu-me asas; corri àquela paragem e, de fato, lá estava Diana no seu posto de confiança.
- Bota! – exclamei; Diana avançou e do primeiro tiro colhi vinte e cinco perdizes.
Mas o pobre animal estava tão extenuado de fome e sede que tive de levá-lo na garupa, para chegar à casa.
Carinho e bom trato reanimaram depressa a minha boa Diana, de modo que, alguns dias depois, já pude com ela correr uma lebre, que me deu o que fazer. Dois dias durou a corrida e, sempre que julgava alcançar o animal endemoniado que devia estar rendido de cansaço, de novo partia com mais vigor.
Nunca fui inclinado a crer em bruxarias, porque as minhas aventuras cedo me haviam acostumado ao admirável, mas desta vez ia perdendo o meu latim.
Por fim, em uma volta feliz, pude atirar e estender morta a lebre veloz, e então ficou-me explicado o enigma. Além das quatro patas ordinárias que todas as lebres têm embaixo do corpo, a minha tinha outras quatro nas costas; quando cansavam as primeiras, o bicho dava um salto e, tornando a cair nas patas sobressalentes, continuava sua corrida veloz.
Já se vê que só uma lebre tão extraordinária poderia zombar de minha valente Diana.

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Como apanhei boa cópia de patos, graças a minha presença de espírito

Em quase todas as minhas caçadas, tive um êxito feliz; mas, apesar de minha conhecida modéstia, manda dizer a verdade que meu imperturbável sangue-frio era que geralmente decidia o bom resultado.
Eis aqui, agora, alguns casos eloqüentes para afirmar isso.
Uma bela manhã, tendo chegado à janela para aproveitar o ar fresco da manhã, dei com um espetáculo que alegrou meu coração de caçador. O lago, que se estendia perto de casa, estava coalhado de patos que evoluíam em alegres movimentos, e pareciam me convidar a conversar.
Impaciente, agarrei minha espingarda e, com saltos impetuosos, precipitei-me escadas abaixo. Tão rápida foi a minha corrida que dei com a cara num batente da porta e tão violenta foi a pancada que milhões de faíscas me saltaram dos olhos.
Mas não havia de ser este choque inconveniente para demover-me do meu intento; contudo, o golpe horrendo teve outra conseqüência. Chegado à beira do lago e no momento de apontar para o bando volátil, percebi que com a violência do encontro saltara a pederneira do cão da espingarda. Que fazer? Voltar em busca de outra? Os patos podiam fugir e, então, adeus caça! Não gastei tempo em esquadrinhar. Lembrando-me do que havia me acontecido, abri a caçoleta, apontei para as aves e, dando-me um murro a valer no olho direito, três chispas saíram que incendiaram a escorva; o tiro partiu e fui recompensado , colhendo de uma vez seis casais de patos, gordos a rachar!
Uma outra ocasião, numa excursão cinegética, costeava eu a beira de um belo lago e dei com grande numero de marrecas; mas, tão distanciadas umas das outras que com um tiro apenas poderia colher uma, apesar de minha grande habilidade. Não valia a pena; mais bonito seria apanhá-las todas; mas como?
Coçando a cabeça com uma mão – todos sabem que este gesto desperta prodigiosamente as idéias -, com a outra remexia minha bolsa de caça, onde encontrei um naco de toucinho, sobra do almoço. Desenrolei então a trela do cão, para dar-lhe maior extensão; atei o toucinho na ponta e, esgueirando-me por entre os juncos, atirei a isca à água. É sabido que todas as aves aquáticas são muito vorazes. Imediatamente acudiu uma marreca e engoliu o toucinho; este, porém, graças à sua qualidade lubrificante, pouco parou nos intestino0s da ave, e caiu novamente no elemento líquido, ficando, porém, a marreca enfiada na corda. A manobra era tão simples que, com a maior facilidade, renovou-se uma dúzia de vezes, enfiando cada vez outra marreca no cordão, até que ficasse transformado em rosário vivo.
Recolhi delicadamente o meu bom apanhado e, enleando a corda nos meus ombros, fui para casa.
Pelo caminho, porém, quando já ia gemendo com o peso de tantas marrecas, deu-se um caso realmente extraordinário.
As minhas prisioneiras, como os amigos leitores sabem, estavam todas vivas, refeitas do primeiro susto, começaram a esvoaçar, e tais esforços fizeram que comigo se levantaram aos ares. Eis-me navegando no mar etéreo sustentado pelas asas das marrecas! Não perdi, porém, o sangue frio. Tratei de dirigir o nosso vôo, valendo-me das abas da casaca como um leme, e tão bem me houve que acertei chegar por cima da chaminé de minha casa. Depressa esmaguei entre os dedos a cabeça de cada uma das marrecas e, descendo pelo cano da chaminé, vim pousar suavemente entre as panelas, no momento em que minha cozinheira ia acender o fogo.
Figurem-se a cara da mulher, quando me viu aparecer assim, com todas as marrecas a tiracolo.

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A enfiada de perdizes e a raposa esfolada viva

O costume das perdizes de voarem em bandos enfileirados, formando cadeia, oferece aos bons caçadores o ensejo de colher de um só tiro várias destas aves, graças a munição que se espalha. Mas, quando acontece topar com a caça sem ter munição para atacá-la, que fazer então?
Tal pergunta fiz-me eu, um belo dia, ao avistar um povo de perdizes, em momentos em que tinha gasto a minha ultima carga de chumbo. Felizmente se não sou lerdo quando se trata de perguntar, menos ainda sou na ocasião das respostas, e logo dei mãos à obra.
Com quatro canivetadas fiz ponta na vareta de minha espingarda; carreguei este projétil de nova espécie, apontei, fiz fogo e, zás! Todas as perdizes espetadas na vareta!
Nem o cozinheiro teria exibido semelhante limpeza ao espetar o assado.
Não há como saber mover-se.
Outra vez, numa excursão na floresta virgem, dei de repente com uma magnífica raposa negra.
Teria sido lástima estragar a pela preciosa com munição de chumbo; de outro lado, porém, não queria perder tão rica presa. Lancei mão do sacatrapo, tirei a munição da arma e, em substituição, carreguei uma bela ponta de Paris, que casualmente trazia no bolso.
Esperei que a raposa se achasse perfilada com o tronco de uma árvore secular; apontei e, com rara habilidade, preguei a cauda da raposa na árvore. Acerquei-me, então; dei com a minha faca de monteiro dois talhos em cruz na cara no animal e, trabalhando com meu chicote, fiz a raposa sair correndo pelos talhos, deixando o couro.

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A cerejeira exótica

Diz o adágio que quem não tem cão, caça com gato. Soem ser bem verdadeiras essa sabedoria do povo, posto que nem sempre sejam aplicáveis ao pé da letra, do que dá fé o caso seguinte:
Uma bela manhã, já longe de casa, vi que havia esquecido a munição de chumbo; nem um bago, nem uma bala!
Que havia de fazer, pois, com tiros de pólvora seca? Voltar levaria tempo; devia achar uma maneira. Remexendo minha bolsa de caça, achei o que me podia tirar dos apuros: um punhado de caroços de cerejas. De contente, bati na testa, carreguei minha espingarda e fui andando, resolvido a fazer frente a qualquer encontro com o meu projétil de nova espécie. A pouco andar apresenta-se um magnífico cervo, de dez pontas; sem hesitar, aponto, largo o tiro, o animal prega um salto formidável e... pensam que caiu morto? Que nada! Foi-se como se fosse tirar o pai da forca.
Muito senti ter-me escapado tão boa presa; mas, o mais hábil caçador às vezes erra o alvo, e de nada serve estar a chorar.
Já havia eu por cem outras aventuras felizes esquecido aquele fracasso quando, um ano depois, na mesma floresta, dei com um cervo de aspecto estranho: no meio dos chifres crescia-lhe na testa uma magnífica cerejeira, coberta de folhas e frutos maduros. Como desta vez esta provido de todos os apetrechos, enviei ao cervo uma bala certeira que o prostrou morto no chão coberto de musgo.
Quando me aproximei, admirando a árvore que crescia entre as aspas do bicho, lembrei-me do meu tiro de caroços de cereja; a minha vítima de hoje era o tal cervo, que levara naquela ocasião um caroço plantado na testa e este tinha produzido frutos tão saborosos como antes nunca provara.